Desceu da cama faltando pouco
tempo. Engana-se quem, engano-me eu, que acho estar ele atrasado. A trajetória entre
dar um salto para fora do edredon quadriculado, objeto macio que guardou nossos
sonos na infância e hoje é só dele, tirar a roupa para se banhar no chuveiro
quente porque ele gosta de banhos quentes ainda que seja verão, por uma
camiseta monocromática, escovar os dentes, arrumar o belo cabelo, ficar
perfumado, não esquecer os óculos de sol, vestir o capacete que desarruma um
pouco seu belo cabelo que continua belo, e estar sentado na mesa do trabalho,
bem, toda essa trajetória é cuidadosamente elaborada. Isso penso eu. Mas quando
penso como se estivesse a pensar com a cabeça dele concluo rapidamente que tal
trajetória não é minuciosamente programada. É apenas óbvia. Que de outra forma se
não a que lhe permite dez minutos a mais de sono?
Primeira dica: Não o acorde.
Quando eu estou lá passando dias
de descanso e resolvo levantar cedo para resolver o problema das minhas
cutículas crescidas desproporcionalmente, esbarro na trajetória dele. Ouço uma
voz braba que me ordena terminar rápido o banho para que não se atrase. Fico irritada
pela primeira vez. Há dois banheiros, mas ele quer usar este. Perco um minuto e
meio entre o me enxaguar com rapidez para que ele não se atrase e o seguir no
meu ritmo porque, afinal, há dois banheiros nessa casa. Mas ele quer usar este.
Algumas coisas se estabelecem em um conforto difícil de mudar. Este banheiro é
sim mais agradável, a janela observa o céu que acabou de acordar e ainda
boceja, espia uns pássaros a procura do café da manhã. Eu sei que tumultuo
quando estou aqui. Atrapalho a rotina com a minha desrotina de férias. Eu sei
que ponho a chave no chaveiro enquanto era para largar na mesa. Sei que troco
alguns copos de lugar. Mas filha do meio inventaram pra isso, não é? Guardo o
restinho de irritação que logo foi embora só para que ele me veja com a cara
fechada. Faço isso porque não posso deslizar e sorrir, não nesse horário da
manhã, não agora que ele acabou de acordar e espera sentado como uma
estátua-viva-muda na cama do quarto do banheiro que eu saia o quanto antes do
chuveiro. Evito olhar para os seus olhos raivosos porque eles chegam carregados
com uma expressão de “ê, minha irmã, você me bagunça e eu estou com raiva, mas
eu acho graça disso tudo e gosto de ter você aqui com seu jeitinho desse jeito
aí”. Sim, o caçula consegue me mirar com raiva e com carinho ao mesmo tempo. E isso,
isso bagunça eu.
Segunda dica: Não fale com ele
quando ele acabou de acordar.
Ficar longe de todos eles me dói
na pele. Sinto falta dos aromas, das amoras. Sinto saudade do meu avô cortando
frutas e limpando as unhas com o mesmo canivete. Da minha avó com sua crença
bonita na vida, apesar das dores crônicas. Da minha tia quando a muralha que
carrega para que ela não desmorone, desmonta. Da minha irmã com seu carinho
materno e seu olhar de sempre vou cuidar de vocês. A simplicidade do meu
cunhado que completa a vida e deixa ela mais bonita. Sinto saudades da força da
minha mãe e do cheiro dela no travesseiro que roubo para dormir. Do meu pai, a
felicidade carinhosa que quer dizer eu te amo sem que ele diga. As vezes estar longe dói tanto que os pelos dos meus braços caem.
Terceira dica: Isto não é uma
dica: Ele te surpreende.
Quando os pelos dos meus braços
estão no chão um abraço chega de longe. Esse cara dançando sob a água no meio
da calçada me lembra você. Lá, eu estava na estrada e apareceu um arco-íris
lindo. Ele voltava pra nossa cidade. Um dia cheio de causas, ações ou sei lá
como se chamam essas coisas de injustiças. A estrada estava só para ele. Fim de
tarde e seu coração foi tomado de colorido. Da esquerda de grama verde até a
direita de casinha no meio do mato. Era um arco mesmo, de cores. Os arrepios de
emoção que sentia foram aumentando conforme o arco-íris se aproximava. Ele diminuiu
a velocidade do carro porque não tinha pressa em essa cena terminar. Foi que
foi e foi chegando cada vez mais perto. Surpreso e plenamente feliz ele passou
por baixo do arco-íris. O meu irmão mais novo, o caçula, passou pelo meio das
cores que se formam no céu. Quando os pelos dos meus braços já estão no piso do
quarto um abraço chega de longe em forma de ligação e ele me conta tudo isso. Foi
a coisa muito linda, foi uma das mais lindas que eu já vi naturalmente assim,
de fenômeno.
Dica quatro: Tem experiências que
transcendem explicações.
Quando repliquei infinitamente
essa história sobrancelhas erguidas me olharam. Passar no meio do arco-íris não
é possível. Sinto por essas pessoas que acreditam estar longe o arco-íris. São as
mesmas que não acreditam que os gatos choram.
Dica cinco: Foi a coisa muito
linda, foi uma das mais lindas que eu já vi naturalmente assim, de fenômeno.
Foto: meu caçula
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