domingo, 25 de novembro de 2012

Um conto sobre o espelho

Ela se arrumava em frente ao espelho retangular pousado verticalmente na parede. Ao colocar os cabelos para trás com o arquinho vermelho, reparou solta a moldura do vidro que reflete. Curiosa, se esqueceu de abotoar o sapato e com um gesto receoso arriscou em adivinhar. O espelho como porta e a moldura como maçaneta. Ergueu os pés para não tropeçar na parede. Porta de espelho não vai até o chão e é mais estreita para atravessar. 

Seu nome não era Alice, mas ela também descobriu um mundo mágico. Estava por detrás, no outro lado, na etiqueta. Conheceu sua casa pelo avesso. Tudo duplicado. Neste outro panorama os espelhos eram olhos, buracos de fechadura; e não um reflexo. O esconderijo perfeito. Engenharia de brinquedo provavelmente deixada por seu avô. Os jogos de adivinhação e os caça-tesouros com ele tinham um sentido agora mais presente. Ela tateou o avesso da casa e ao acender as lâmpadas amarelas quis mesmo morar ali: na casa que existia dentro da casa. 

Viu seu quarto olhando-o de fora (ou de dentro?). Percorreu seu novo refúgio com calma. Percebeu que em alguns pontos das paredes havia lençóis pendurados. Ao retirá-los entendeu que o lado oposto dos espelhos vigiavam escancaradamente todos os cômodos e todas as falas que se falam sozinhas e todas os segredos que se revelam entre quatro paredes. Logo compreendeu que os lençóis serviam para não ver o que não deve ser visto, para não ouvir o que não se deseja escutar. 

Ela aproveita quando todos saem para desnudar as paredes da casa de dentro da casa. Seu precioso esconderijo a ensinou a ver o vermelho da pele, a planta pela terra, o caminho pelo labirinto, a fogueira da brasa, o oitenta e o oito, a pedra e o pau, o caminho do fim, a visão dos olhos dos outros.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Coador

Marcaram o último encontro para aquela noite. Apesar da proximidade entre os dois corpos sentados na mesa pequena do café pequeno a distância era alargadora e ardia. Ardia no corpo dela cada palavra errada que ele dizia. Cada letra afiada saída da boca que ela ainda desejava deixava os seus pequenos ombros brancos cada vez mais vermelhos. Ele não sabia sobre ele e nem sabia o que dizer. Mas dizia. Por que não se cala?, ela pensava. Por que continua tentando consolar o fim do nosso relacionamento depois de me ver e atravessar a rua? Ele não sabe quem ele é e isso fez bolhas nos ombros dela que já estavam rachados. Ele não sabe o que fazer com ele mesmo e isso abriu uma ferida de queimadura no peito dela quando ele confessou que, sim, a amava. Mas ele se esqueceu de amar. Com os ombros secos e a língua imóvel ela demorou para conseguir "pára de falar". 

Ele parou. Engoliu as palavras que ela doía ao ouvir. Por que não se cala?, ela pensava. Por que ele não se cala? Por que continua falando com esses olhos grandes cheios de dúvidas e repletos de uma interrogação profunda que ele esconde e não sabe responder? E por que o que ele diz parece mentira e mesmo assim eu acredito? E mesmo assim ela acredita. E talvez ela acredite na incerteza do que ele afirma. 

As vírgulas que ele cuspiu estavam cravadas em seus finos dedos. As mãos dela brancas permaneciam cada vez mais frias porque ele as deixou abandonadas em cima da mesa durante toda a conversa. As mãos brancas machucadas de fiapos afiados das vírgulas que ele cuspiu. As vírgulas que tanto coloquei nas frases ininterruptas por ainda querer o sorriso sincero que ela sorri com os olhos e eu não sei pedir. Por sentir falta das brincadeiras exageradas na hora da despedida. Por desejar o tesão apaixonado que ela sente por mim. Por querer estar com ela e não suportar isso. 

O silêncio ensurdecedor se estendeu até que os olhos dele secassem toda água. Ele não sabe chorar. Sua lágrima foi de licor. Até que os ombros dela sangrassem. O café empalideceu. O chocolate amargou. 

Ele pergunta: 
- Seus olhos estão esverdeados hoje. 
- Eles só ficam assim quando eu choro. Ou  quando está sol.