segunda-feira, 29 de julho de 2013

Uma mancha de caneta no meu peito

Aconteceu de nos beijarmos um dia.
 
 
 
Você esqueceu seu cheiro no meu travesseiro e eu já nem me lembro quando deixei você entrar aqui. Agora você está aqui, mesmo quando eu quero dormir sozinha.
Da próxima vez nós vamos pra sua casa e será a minha vez de esquecer. Uma meia calça de verão, um perfume no banheiro. Meu batom vermelho bem em cima da sua cama. Um coração desenhado no vapor do chuveiro. Minha citação favorita no seu caderno de anotações e um desenho que gosto de um artista que gosto na tela do seu computador. Meu desastre deixou cair uma gota de esmalte no seu lençol, desculpa. Em compensação desci para o reciclável todas as garrafas do nosso fim de semana. Eu esqueci meus discos aí, posso passar pra pegar? Eu quis esquecer meus discos aí pra perguntar se posso passar pra pegar. Passei na frente de um supermercado e uma garrafa de vinho pulou na minha bolsa, vamos beber?
 
Da próxima vez nós vamos pra sua casa e será a minha vez de esquecer. A calcinha que você me tirou ainda no corredor. Um chiclete mascado na luz do seu abajur. Estorou. Desculpa. Vou deixar o meu cheiro na camiseta da sua banda favorita. Mentira, você nem consegue escolher apenas uma banda. É uma pergunta injusta, eu sei. Ok, não faço mais. Não faço mais essa pergunta sobre qual é a sua banda favorita. Não faço mais aquela salada que você não gosta. Não falo outra vez sobre como prefiro o cinema vazio. Nunca mais corto as unhas em cima da cama, nem deixo meus sapatos no meio do quarto. Não chego de surpresa. Não te acordo com suspiro. Não coloco a minha língua na sua orelha. Nunca mais cobro aquela visita.
 
Da próxima vez nós vamos para a sua casa e será a minha vez de esquecer. As anotações de papel essenciais para o artigo que estou escrevendo, droga! Meus brincos no seu livro de cabeceira. Meu colar de envelope entre os últimos CD's que escutamos. O carregador do celular. Minha bagunça nos frascos do seu banheiro. Meu beijo colorido no seu pescoço. Meu rascunho entre os seus.
 
 
Da próxima vez nós vamos para a sua casa e será a minha vez de te esquecer.
 

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Artura

Artura nunca teve um mal-estar físico de dor tão aguda assim. Mas na última semana seu estômago estava de ponta-cabeça. Que borboletas, que nada. Nem libélulas, nem beija-flor. Está mais para arara, pica-pau, pombo sujo da Praça Santos Andrade, mosca morta, vespa verde. A comida entrava e ali parece que ficava por horas. Alimento preso no estômago torto, no estômago sujo. A água ebulia lá dentro.


Parou de comer. 

Artura no plantão do hospital com soro tomando. Já não bastasse o estômago estranho e vieram as picadas nas veias que sumiram. Derreteram ao perceberem a aproximação da agulha que fincou várias vezes como alfinete fino que escapa e se aloja entre a unha e a carne.

Ela disse que doeu.

Marcaram a radiografia para o dia seguinte. E seu estômago pesava cada vez mais. E mais. Pesou tanto que no curto caminho entre a cama e o banheiro gelado precisou ir sentada. Arrastando a bunda no chão. Limpando o piso poluído da enfermaria. Quando se deitou novamente a cama caiu, tamanho o peso de seu órgão. Dormiu ali mesmo porque não quiseram arriscar outra cama estragar. Pouco tempo durou seu sono cansado. Artura foi despertada por uma forte ânsia que escapou.

Vomitou. Vomitou. Vomitou.

Mas que estranho! Que caso interessantíssimo! É uma incógnita! Quanto mais vomitava, menos ela pesava. Quanto mais de si saía, menos em si de alivio ela cabia. Da boca do estômago de Artura não saiu comida, não saiu suco gástrico. Saíram letras. Sim, letras engolidas de palavras e frases não ditas. Letras tortas, letras bravas, cansadas, exaustas, raivosas, explosivas, chorosas. Leras pretas, vermelhas, roxas. De confusas no chão elas se erguiam decididas no ar. Leu-se dor, leu-se tristeza, insegurança. Palavras soltas e frases inteiras. Até um poeminha assim:

A lágrima que engoli
virou pedra no meu estômago
Aquilo que esqueci
tornou-se ácido no meu estômago
O beijo que não dei
apodreceu no meu estômago
O dia em que falhei
transformou-se em noite no meu estômago

O poeminha, as frases e as palavras depois de escritas no ar gargalharam bem alto assim: rá-rá-rá, rá-rá-rá! Ah, Artura, você atura muita coisa!