domingo, 7 de novembro de 2021

Carta para meu avô paterno, o vô Zé do Boi.



Escrita em 26-29/10/2021.

Oi, vô

Hoje faz sete dias que você morreu. E o simples ato de escrever essa frase me parece violento. Morreu, morte. E é violento, uma porrada mesmo. Dessas que pega o boxeador desprotegido. Sempre é inesperado. E você, vô, sendo uma lenda, como imaginar sua morte? Todos ficamos tristes, estamos muito tristes. E como disse sua bisneta mais velha no dia do seu velório: “sim, todo mundo tá triste, você viu? O céu tá nublado!”. E como a cidade chorou naquele dia, uma aguaceira danada. Minha irmã falou que era Santa Luzia avisando que você chegou bem.

Lembra, vô? As clássicas e tão esperadas idas à fazenda na caçamba da camionete. O momento de maior aventura era correr pelas lombadas gigantes no chão de terra batida. Todas as crianças segurando firme com as mãos. Os pés saiam do chão e a gente voava por alguns segundos, infinitos nas nossas memórias. E não só nas nossas, suas netas e netos. Quantas mensagens recebemos, vô, das nossas amigas e amigos querendo nos abraçar. E todas as mensagens vieram com alguma lembrança sobre você: o seu sorriso, as brincadeiras, as piadas, as atrapalhadas, os doces escondidos no porta-luvas do carro, e as tais idas à fazenda na caçamba da camionete.

Dormir e acordar na sua casa esses dias tem sido um misto de prazer, saudade e dor. Você tão presente: a casa em si, a casa que você construiu, os óculos de grau na cozinha, a bengala encostada na parede, seu cheirinho nas suas roupas e, claro, como não?, o famoso canivete. Você tão presente em cada um desses detalhes, e ao mesmo tempo, tão ausente em todos eles.

Sair com você pela cidade era um evento. Muita, mas muita gente te conhecia. E o tempo de deslocamento de um ponto ao outro obedecia à sua fama, sua prosa boa, e não aos cálculos da física. E por falar em exatas, não há matemática que explique sua sabedoria de vida. De olhar um boi sabia quantas arrobas tinha e até, diz a lenda, se o pulmão estava condenado ou não.

Quem te conheceu, quem conviveu com você, certamente tem pelo menos uma boa história pra contar. Falar pela cidade “sou neta do Zé do Boi” é abrir um portal com uma certeza e muitas surpresas. A certeza? O carinho com que falam sobre você, vô. E as surpresas? Bem, são tantas... Um causo maluco aqui, outra situação memorável ali, suas peculiaridades, histórias incríveis e muito, muito afeto e risada boa.

Peço licença agora pra você, vó, peço licença pro meu pai, pras minhas tias, pra quem trabalhou com o meu avô, pras suas amigas e amigos, pra todos os familiares, afinal. Mas eu acho mesmo que meu vô nasceu pra ser vô! E não digo isso acreditando que fui uma das poucas a ter essa alegria, pois sei que além de mim, suas outras netas, seus netos e suas bisnetas, você amou muita gente por aí, vô, com esse cuidado tão especial de pai e avô, tão seu, tão único.

É tão estranho reunir a família e você não estar, tão errado não ouvir sua voz, sua cantoria, e até suas reclamações. Você adorava a casa cheia de gente, criançada correndo, tudo era festa! E sabe, vô, comecei escrever essa carta bem triste mesmo. Mas falar de você e não sentir um afago, não lembrar do seu jeitinho e não sorrir com os olhos é impossível. A tristeza tá aqui, a saudade estará sempre, mas minha memória de você vem também com alegria, com a doçura que foi ter te conhecido, com a diversão que é ser sua neta.


Lenda: narrativa fantasiosa transmitida pela tradição oral através dos tempos, em que um fato histórico se amplifica e se transforma através da evocação poética ou da imaginação popular. De caráter fantástico e fictício, as lendas combinam fatos reais e históricos com fatos irreais que são produtos da imaginação humana. Uma lenda pode ser também verdadeira, o que é muito importante. 

É, vô Zé do Boi, o senhor vai morrer nunca não.

A gente te ama, vô. Um abraço.


Zé do Boi
18/05/1935 - 22/10/2021

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Romã

Vestindo um pano azul e um chinelo sem cor, caminhei pelas ruas depois do almoço que não almocei. Dormiam as flores a sesta. Dormiam as folhas também. Algumas, de tão sonolentas, caíram das árvores e bordaram o asfalto, a calçada. Uma pétala colorida caiu no meu cabelo. Agora tenho fios cor-de-rosa. E tem um fio que me parte ao meio. Tem esse frio nos meus seios. Tenho filhos que não nasceram.

Espero pelo ônibus que não vou subir. O banquinho do ponto é velho. Tomo cuidado com as ferpas que querem escapar. Reparo que o portão da casa da frente está mais branco. Isso indica que, apesar das cortinas sempre fechadas, tem gente morando ali. Tem uma cadeira na varanda e um tapete feito à mão. Tem uma árvore na frente e deve ter chá no meio da tarde. Vai ter esse cheiro de pão quando o sol for descansar. Eu tenho as unhas com vermelho pela metade e tenho essa dor, essa incerteza. Carrego esse medo, a minha angústia. Meus olhos murcharam e dormi de bruços ali mesmo. Esqueci das ferpas que queriam fugir.

Acordei com todas elas no meu peito.

Vestindo um pano azul com bolinhas vermelhas me sentei no banco velho. Eu tirava as ferpas e ia sangrando, sangrei tanto que agora minhas unhas encontram nenhuma falha no esmalte. Fui derramando até o outro lado da rua. Me convidei pra entrar. Sujei o piso branco da casa de portão mais branco. Manchei o estofado da cadeira. Melei a faca com o meu sangue. Pareceu que comíamos pão de beterraba. A mesa do café da tarde não tinha café, mas comi biscoito de nata e bebi chá de hibisco. Subi na mesa e dormi novamente. Deixei a cozinha vermelha e fui caminhando por onde nunca tinha ido, mas por onde sei que vais, pra onde nunca cheguei e nem sei se vou chegar. Caminho por um convite confuso e nebuloso, mas que aceitei.



quinta-feira, 2 de julho de 2015

Liquidifica-dor




O solo de piano que ouvi nessa noite ainda ecoa na minha cabeça quando, ao me encasular num grande cachecol, caminho até a porta. A umidade do ar denuncia a chuva antes mesmo que eu possa enxergar a rua encharcada. Daqui de dentro não consigo observar se a chuva persiste. Na soleira da porta procuro um poste. Pisco em tempo prolongado um dos olhos e tapo com uma das mãos a luz que, apesar de não ser forte, me cega. Agora sim. Ainda chove. Uma chuva que cai com personalidade, sem pressa. É uma chuva-feiticeira. Parece carinhosa, mas te molha até a meia, até a calcinha. A axila. Respiro. Eu, claro, não trouxe um guarda-chuva.

Minha casa não está longe e eu realmente queria aproveitar essa caminhada. Passar pelas árvores de troncos tortos, pela casa escondida e pela casa viva, a que sinto vontade de conhecer. Ao chegar na quadra desta que tem o muro baixo troco o ritmo dos meus passos. De quatro tempos para dois. pá-pá-pá-pá, pá-pá-pá-pá, pá----pá, pá----pá. Desacelero. Estaciono. Finjo amarrar os cadarços ou tirar uma pedra da sapatilha. Repito esse ritual na frente da casa-viva, sempre, sem pressa, assim como a chuva-feiticeira. Mas eu sou mulher-transparente. Basta pôr reparo que se apercebe. Meu cadarço sempre desamarra em frente a mesma casa. Eu propositalmente tenho muita paciência em resolver meu pequeno problema. Quanto mais paciência, mais tempo.

Um dia me ofereço pra um café.

Essa chuva é feiticeira mesmo. Sussurra que está tudo bem, me seduz pra ela. Quase me ganha. A tosse que dói meu pulmão me convence a pegar um táxi e me protege da água gelada que certamente intensificaria minha gripe. A noite não vai seguir como planejei. A tosse me salvou da enfermidade, mas me privou da espontaneidade. Vou passar pelos detalhes do meu caminho sem poder admirá-los. Preciso indicar a direção: esquerda, esquerda, direita, esquerda, no primeiro portão à direita, por favor. Obrigada. Débito. Senha incorreta? Ops, cartão errado. Boa noite. Bom trabalho.

O prédio é baixo, mas escolho o elevador. Encontro um conhecido que esbarra em mim, mas não se desculpa. Tampouco me cumprimenta. Me sinto invisível e no mesmo momento uma peça da roupa que visto cai. Deixo no chão. Durmo com os pés gelados e com o apito que nasceu no meu ouvido na última semana. Acordo com a visita surpresa de uma amiga que quis preparar o almoço. Outra peça se desprende de mim. Conheço alguém. Ganho um abraço, um carinho, e no meio do beijo as roupas que me restavam no corpo perdem a costura. Estou nua. Sou mulher-transparente. Durmo com o apito que nasceu no meu ouvido na última semana e com uns pés esquentando os meus. Sou tomada por tamanha calma que meus bronquíolos relaxam.


Na manhã seguinte posso dormir mais que ele. Vejo que tem roupas. As que me restaram estão desmanchadas, não conseguem me cobrir. Sem panos ou tecidos nada mais é possível. Caminho nua pela cidade. Mas tudo bem, já sou mulher-transparente e o segredo que tentei esconder não consegui. Com os bronquíolos relaxados respirei intenso no abraço que ganhei. Engoli um bicho. Um bicho sem desenho definido ou nome escolhido. Um bicho que todo mundo vê. Ele anda dentro de mim e encontra cada célula do meu corpo. É um bicho esquisito que sem fazer cócegas me faz rir e sem contar histórias de terror me amedronta. Mulher-transparente que sou olho pra esse bicho em frente ao espelho. Tento agarrá-lo, mas ele é mais rápido e não se aquieta. De tanto me fazer seu caminho fiquei pisoteada. Mas eita bicho intrigante, não é que voa também? De tanto me fazer seu ar, virei nuvem leve. Agora minhas lágrimas, as de leveza e as de pisoteio, não escorrem dos olhos, mas caem do céu.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Descafeinada

Aceitou o convite para ir em um café que não gosta. Não por não gostar de café, mas além de não gostar de café aquele é caro para a qualidade que não tem. Os sofás são os primeiros a receber visita, estão sempre cheios. As mesas com quatro cadeiras não têm suporte para oito pés. Aparência mentirosa. Há uma constante dança descoreografada e sem ritmo entre pares diferentes de calçados. Tênis, sapatilhas, o sapato vermelho. Em uma das trocas de posição, bonito esse sapato. Obrigada. O cheiro do ambiente é bom e porque sim. Cheiro de café só é ruim se o pó queima. Conclui ao observar bocas em movimentos de fala que cheiro de café coado é melhor. Conclui logo em seguida que sua preferência se deve à sua cidade natal. Lá sempre se bebeu café coado. Longe de ser uma metrópole, mas maior que os centro urbanos mais próximos, Cornélio Procópio tem uma fábrica de café. Sempre teve. Existiu antes da cidade existir. Existiu primeiro.

Quando ela ainda brincava de amarelinha na rua sem saída, a fábrica ficava longe da cidade, no caminho de estrada. A realidade é que a fábrica continua no mesmo lugar, só que mais perto. Esse fato se deve a não se sabe qual crescimento: o da cidade ou o da menina. Criança que era detestava quando os ventos sopravam da fábrica em direção sua casa, a essência do odor do pó marrom vinha junto e impregnava o ar. Adulta que se tornou ama quando os ventos sopram da fábrica em direção à sua casa de menina, o cheiro de café se espalha pela cidade justo ao final da tarde e ao visitá-la, as vezes ganha esse prazer. Dizem que nosso paladar se modifica conforme crescemos. Eu gostava tanto doce, tanto! Tanto chocolate pirulito bala caramelo chiclete jujuba, mentira jujuba não, nunca gostei de jujuba, maria-mole brigadeiro beijinho cajuzinho. Detestava rúcula, para ela tinha gosto de terra. Tenho certeza que há uma explicação biológica barra evolucionista barra de preservação ou instinto barra outros termos que explica mesmo, realmente, de modo convincente a mudança do nosso paladar. Mas Ciência, me desculpe... não consigo deixar de me perguntar: será que não passei a gostar de rúcula por me acostumar com o amargor da vida e então aceitá-lo na minha boca?


O assunto se tornou tão enérgico que o casal descolado que se sentou há pouco na mesa ao lado parou de conversar para ouvir. Agora eles se falam por olhares concordando ou não com o que dizemos. Carioca. Seu amigo pediu um carioca, por favor. Carioca é café coado. Então não devia ter esse apelido. O mais apropriado seria alguma coisa entre procopense e cornélinho. A fábrica de café existiu lá primeiro. A verdade é que estou com sono e falo pouco. Até tinha um comentário muito bom a tecer em dado momento, mas tinha em maior escala a preguiça de falar. A chuva a chama de volta pra casa. É que assuntos da alma salgaram as bebidas e ela não está para angústias hoje. Aquele choro que dói bem aqui, sabe? É, bem aí! Deixa, deixa a cidade ser a atriz principal. Ela tá tão bonita nesse clima outonal. Tão sincera. Pra sair de casa em dias assim só a necessidade ou a sinceridade. Amor de outono, amor de inverno não dura só um verão. Eu sei Ciência, sei que as estações duram cada uma o mesmo período, mas me desculpe. É que tem um tempo dentro da gente que é outro, tempo esse que você nunca vai entender. Assim como eu não entendo estatística e química. Assim como eu não entendo a fome, a fúria, a violência, a miséria, a desigualdade. Assim como eu não entendo os motivos do abandono que sofri. Não entendo porque ele se despediu com um até logo e não voltou. Me deixou, me descafeinou. Eu não entendo Ciência, por que ele não fica mais um beijo? Por que ele não fica mais uma vida? Assim como não entendo esse silêncio, Ciência, você não vai conseguir entender o tempo esticado que tô sentindo dentro de mim.



Foto: Elisa Ribeiro

sábado, 14 de março de 2015

Caçula

Desceu da cama faltando pouco tempo. Engana-se quem, engano-me eu, que acho estar ele atrasado. A trajetória entre dar um salto para fora do edredon quadriculado, objeto macio que guardou nossos sonos na infância e hoje é só dele, tirar a roupa para se banhar no chuveiro quente porque ele gosta de banhos quentes ainda que seja verão, por uma camiseta monocromática, escovar os dentes, arrumar o belo cabelo, ficar perfumado, não esquecer os óculos de sol, vestir o capacete que desarruma um pouco seu belo cabelo que continua belo, e estar sentado na mesa do trabalho, bem, toda essa trajetória é cuidadosamente elaborada. Isso penso eu. Mas quando penso como se estivesse a pensar com a cabeça dele concluo rapidamente que tal trajetória não é minuciosamente programada. É apenas óbvia. Que de outra forma se não a que lhe permite dez minutos a mais de sono?

Primeira dica: Não o acorde.

Quando eu estou lá passando dias de descanso e resolvo levantar cedo para resolver o problema das minhas cutículas crescidas desproporcionalmente, esbarro na trajetória dele. Ouço uma voz braba que me ordena terminar rápido o banho para que não se atrase. Fico irritada pela primeira vez. Há dois banheiros, mas ele quer usar este. Perco um minuto e meio entre o me enxaguar com rapidez para que ele não se atrase e o seguir no meu ritmo porque, afinal, há dois banheiros nessa casa. Mas ele quer usar este. Algumas coisas se estabelecem em um conforto difícil de mudar. Este banheiro é sim mais agradável, a janela observa o céu que acabou de acordar e ainda boceja, espia uns pássaros a procura do café da manhã. Eu sei que tumultuo quando estou aqui. Atrapalho a rotina com a minha desrotina de férias. Eu sei que ponho a chave no chaveiro enquanto era para largar na mesa. Sei que troco alguns copos de lugar. Mas filha do meio inventaram pra isso, não é? Guardo o restinho de irritação que logo foi embora só para que ele me veja com a cara fechada. Faço isso porque não posso deslizar e sorrir, não nesse horário da manhã, não agora que ele acabou de acordar e espera sentado como uma estátua-viva-muda na cama do quarto do banheiro que eu saia o quanto antes do chuveiro. Evito olhar para os seus olhos raivosos porque eles chegam carregados com uma expressão de “ê, minha irmã, você me bagunça e eu estou com raiva, mas eu acho graça disso tudo e gosto de ter você aqui com seu jeitinho desse jeito aí”. Sim, o caçula consegue me mirar com raiva e com carinho ao mesmo tempo. E isso, isso bagunça eu.

Segunda dica: Não fale com ele quando ele acabou de acordar.

Ficar longe de todos eles me dói na pele. Sinto falta dos aromas, das amoras. Sinto saudade do meu avô cortando frutas e limpando as unhas com o mesmo canivete. Da minha avó com sua crença bonita na vida, apesar das dores crônicas. Da minha tia quando a muralha que carrega para que ela não desmorone, desmonta. Da minha irmã com seu carinho materno e seu olhar de sempre vou cuidar de vocês. A simplicidade do meu cunhado que completa a vida e deixa ela mais bonita. Sinto saudades da força da minha mãe e do cheiro dela no travesseiro que roubo para dormir. Do meu pai, a felicidade carinhosa que quer dizer eu te amo sem que ele diga. As vezes estar longe dói tanto que os pelos dos meus braços caem.

Terceira dica: Isto não é uma dica: Ele te surpreende.

Quando os pelos dos meus braços estão no chão um abraço chega de longe. Esse cara dançando sob a água no meio da calçada me lembra você. Lá, eu estava na estrada e apareceu um arco-íris lindo. Ele voltava pra nossa cidade. Um dia cheio de causas, ações ou sei lá como se chamam essas coisas de injustiças. A estrada estava só para ele. Fim de tarde e seu coração foi tomado de colorido. Da esquerda de grama verde até a direita de casinha no meio do mato. Era um arco mesmo, de cores. Os arrepios de emoção que sentia foram aumentando conforme o arco-íris se aproximava. Ele diminuiu a velocidade do carro porque não tinha pressa em essa cena terminar. Foi que foi e foi chegando cada vez mais perto. Surpreso e plenamente feliz ele passou por baixo do arco-íris. O meu irmão mais novo, o caçula, passou pelo meio das cores que se formam no céu. Quando os pelos dos meus braços já estão no piso do quarto um abraço chega de longe em forma de ligação e ele me conta tudo isso. Foi a coisa muito linda, foi uma das mais lindas que eu já vi naturalmente assim, de fenômeno.

Dica quatro: Tem experiências que transcendem explicações.

Quando repliquei infinitamente essa história sobrancelhas erguidas me olharam. Passar no meio do arco-íris não é possível. Sinto por essas pessoas que acreditam estar longe o arco-íris. São as mesmas que não acreditam que os gatos choram.

Dica cinco: Foi a coisa muito linda, foi uma das mais lindas que eu já vi naturalmente assim, de fenômeno.




                                                            Foto: meu caçula

sábado, 7 de março de 2015

Convite

Estávamos em um hotel. O lugar era grande e diferente do que estamos habituados. Hospedados em outro quarto, apesar de estarmos no nosso bairro. Nós saímos e bebemos um pouco.

Tá vendo aquela casa? É de um arquiteto aqui da cidade. É uma casa dos anos cinquenta que foi inteira restaurada, tem um ateliê incrível lá dentro. É que o marido do arquiteto é escultor. Não, nunca entrei lá. Um menino que trabalha comigo, é, menino, ele sempre conta isso quando passamos por aqui e aí tô te contado agora.

O dia já dormia há horas.

Essa rua é tão bonita. Eu gosto quando as árvores se encontram no topo, no meio, ali no alto. É que essas árvores são casais apaixonados, mas há muito tempo alguém as separou com esse asfalto no meio. Aí com saudade umas das outras elas foram crescendo pra ficar pertinho assim. O que, essa história? Ah, é minha mesmo. Inventei esses dias, mas é tudo verdade.

Tinha um karaokê no caminho pro hotel e a gente resolve entrar. Cantamos clássicos da nossa adolescência e uma música de amor. A gente ainda não sabe se é amor. Eu acho que é cuidado. O gelo seco deixa o ambiente ainda mais escuro. Um escuro bom, escuro sedutor. Escuro branco e te perdi na fumaça. Ali está você. Sorrindo com os olhos fechados aspirando profundamente.

Na volta, você apertou o último andar, mas estávamos no terceiro. Você ria como quando um bebê descobre os sons que a boca pode fazer. Ríamos juntos.

meus olhos fechados
estou aberta
encosta tua boca aqui devagar. Gosto quando tua franja escorrega no meu seio quando você me lambe uma orelha e só o lado esquerdo do meu corpo arrepia gosto quando cafuné.
minha pele excitada
sua língua atuante
fios dos cabelos entre os dedos
respira assim na minha nuca. Gosto quando tua mão me surpreende quando teu corpo quente assusta o meu mais frio gosto quando carinho.

Deixamos a janela aberta. Você me confessa sua primeira paixão: a trapezista do circo. Eu morava no sítio e em outubro dos meus seis anos de idade o circo visitou a cidadezinha próxima. Meus pais me levaram, eu e minha irmã. Fiquei encantado. Ela foi anunciada como o principal show da noite. Ou eu que achei o show dela o mais belo. Ela entrou sem que ninguém pudesse ver porque soltaram muito gelo seco no ar. O cheiro do gelo seco. Eu me lembro do cheiro do gelo seco. O branco foi sumindo e ela aparecendo. Apareceu bonita com um maiô cor-de-rosa cheio de glitter. Subiu com elegância até o teto de lona e se soltou com maestria. Levei as mãos à boca num suspiro de medo. Pensei que ela, tão linda, fosse cair. Aquele dia aprendi que a gente pode voar.

Dormimos entre os lençóis e a lua. Acordo com a brisa da manhã que voa a cortina até que ela encosta em meus pés. A cama fica perto da janela e sinto o frio calmo da primavera. O vestido está longe e não encontro minha calcinha. Me aqueço com sua camiseta e me aconchego na sua silhueta.

Eu viveria uma sucessão de domingos aqui. Quando os domingos vêm acompanhados, eles são bons. São domingos dourados.
me aperta assim devagar. Gosto quando me aperta assim devagar. Gosto quando fica.