quinta-feira, 27 de junho de 2013

duros cílios

Brinco de boneca. Brinco de boneca na orelha ou brinco de brincar de boneca? Boneca tem vida quando brinca. Pode ter vida sem brinco. Quando não brincamos com elas, elas ficam


assim: sentada na cadeira torta a boneca ou a cadeira? Olhando pro teto. As mãos de dedos abertos. Paradas, mas expressivas. Se você brinca com elas, expressivas, se não brinca com elas, pausas aterrorizantes.

Voltei do Cream Porter e do Irish Red. Voltei da brincadeira de te encontrar. Voltei da brincadeira de te procurar. Ainda busco no esconde-esconde de mim. Alguém pra balança caixão balança você dá um tapa na bunda que vai se esconder? Alguém pra unidunetêsalamêlinguê o-sorvete-colorido-escolhido-foi você?

Voltei do sangue como água no meio-fio e voltei do medo de ser estuprada no meio. Da rua.

Caminhar no amarelo dos postes da noite. Caminhar reparando só no chão de minúsculos paralelepípedos. Caminhar reparando só no topo, no topo, no terraço, no alto dos prédios. Caminhar no céu preto com alguns focos de brilho. Coma o brilho. Qual o fosco que te transluz? Caminhar nas digitais lupadas, de lupa, dos meus dedos. Ontem tinham menos rugas. Ontem tinha menos tremor. Ontem tinha mais sangue.

É que o sangue no meio-feio. É que tinha espuma de sangue na água do meio-fio.

Sonhei com uma agulha de soro-que-me-cura-me-cura-?- fincada no pé. Direito. No pé que caminho direito. Doeu a veia verde saliente do topo do pé. Da superfície do pé. Da superfície. da pele.


Explodiu a veia. Véia. Explodiu a veia do topo da pele do pé. Puxei o rabo do tatu, quem saiu fui eu. Quem roubou pão na casa do João fui eu. O terceiro que a Terezinha deu a mão fui eu. A ligação que caiu fui eu.

domingo, 9 de junho de 2013

Dois pontos

- Você nunca pegou ônibus, né?
- Não.
Quer dizer, já. Mas não aqui.
- Pra onde você quer ir?
- Pro começo da estrada.
Quer dizer, pra rodoviária.
- Eu tô com um tempo livre. Vem que te acompanho.
- Da pra ir caminhando?
- Não é muito perto. Mas também não é muito longe.
Aquilo foi um sim. Ela entendeu e logo seguiu uma direção. Era a direção errada, mas ele preferiu ir pela empolgação dela. Depois arrumava a ordem do caminho.
Exercício difícil não pensar que ele estava com uma estranha e como assim? Eu nunca imaginei tamanha proximidade com quem nunca vi. Mas optou por tentar desativar o superego e é isso aí. Concluiu que o nó entre seus quase dois metros de altura e a delicadeza do pequeno tamanho da desconhecida estava levemente frouxo, mas feito. Afinal, quem corre maior perigo ali é ela. Eu sei que cidade é essa e por onde ir.
Mas será que sabia?, pensou eu que acabei de inventar essas duas pessoas. Até parece que a baixinha compartilha minha hipótese, já que
- Por que você não relaxa? Acho que você tá tenso.
- É.

Pausa. Pausa para ele desanuviar suas ideias aprisionantes e perceber que para ela é inevitável olhar pra cima. Os topos dos prédios, o cara escovando os dentes na janela, as roupas ainda esperando o sol, as tags, a planta que escapou do concreto, o edifício aceso da empresa que nunca para de trabalhar, a música sanfonada da sociedade portuguesa, aula de dança de salão, a luz colorida-brega da boate de terça-feira-quase-noite, a coruja no chão.
Pausa para ele se hipnotizar com o novo ao seu lado e, com o novo, se descuidar e tirar as mãos do bolso, escancarando que elas estavam roxas. Roxo escuro. Roxo pancada. Roxo hematoma.
- O que aconteceu?, recebeu a pergunta assustada.
O roxo hematoma das mãos saiu do peito, do preso que fugiu do coração. Foi pra onde todo mundo vê porque sua boca não diz e sua voz cala. A cor era tão intensa que abandonei por instantes a taça de vinho. O roxo hematoma das mãos saiu do peito, do plexo e pulou pros dedos que são obrigados a se relacionar. Ela agarrou uma de suas feridas e a segurou como quem segura um tesouro.
- Que horas sai seu ônibus?
- Não sei. Não tenho um ônibus pra pegar.
- Mas você não tá indo pra rodoviária?
- Sim, mas ainda não sei pra onde vou. Sei pra onde quero ir, mas não sei pra onde vou.
- Posso então te levar pra um lugar que gosto muito?
Aos sons de tijolos esbarrados e risadas algumas eles pularam o muro.
- Eu nunca invadi qualquer lugar antes.
Era a vez de ela mostrar uma franqueza. Subiram vários andares no escuro tomando cuidado com a fenda do elevador que nunca foi posto ali. Ela estatuou ao ver a cidade do alto e seu fim no horizonte.
- É bonito aqui. É lindo.
As confidências compartilhadas e os segredos divididos se assustaram com a repentina interrupção. Ele vomitou em meio a uma frase. Vomitou roxo o que não comia há dias. Há tempos seus órgãos não sentiam alívio e seu sangue até se esquecera da sensação tranquila de percorrer as veias sem entraves subjetivos ou existenciais.

- Obrigada pela companhia.
- Obrigado pela sinceridade.
Um abraço tão genuíno e caloroso que senti minha pele amortecer.
- É, acho que seu ônibus está saindo.
- É. Tchau.
Ele se recordou de tudo enquanto caminhava até sua casa e ao abrir a janela da sala desabafou:
- É bonito aqui. É lindo.
Ele, que já havia se habituado à composição daquela arquitetura com o céu, estalou os olhos ao reparar naquela cor que sempre esteve ali. Era uma cor que estava todos os dias, mas não era a cor de todos os dias. Ele até esqueceu o casaco cinza para se embriagar com o calor que o azul forte proporcionava. Os pelos altos de arrepio chegaram a dormir. No mesmo instante em que ela carregou as pálpebras pesadas em direção às sobrancelhas para se perder no céu escuro. No verde rasteiro e silencioso encoberto pela luz redonda e imponente que vinha do céu.
As mãos dele estavam brandas. Os olhos dela choraram doces alegrias saudosas. Eu finalmente respirei até os bronquíolos.