sábado, 14 de março de 2015

Caçula

Desceu da cama faltando pouco tempo. Engana-se quem, engano-me eu, que acho estar ele atrasado. A trajetória entre dar um salto para fora do edredon quadriculado, objeto macio que guardou nossos sonos na infância e hoje é só dele, tirar a roupa para se banhar no chuveiro quente porque ele gosta de banhos quentes ainda que seja verão, por uma camiseta monocromática, escovar os dentes, arrumar o belo cabelo, ficar perfumado, não esquecer os óculos de sol, vestir o capacete que desarruma um pouco seu belo cabelo que continua belo, e estar sentado na mesa do trabalho, bem, toda essa trajetória é cuidadosamente elaborada. Isso penso eu. Mas quando penso como se estivesse a pensar com a cabeça dele concluo rapidamente que tal trajetória não é minuciosamente programada. É apenas óbvia. Que de outra forma se não a que lhe permite dez minutos a mais de sono?

Primeira dica: Não o acorde.

Quando eu estou lá passando dias de descanso e resolvo levantar cedo para resolver o problema das minhas cutículas crescidas desproporcionalmente, esbarro na trajetória dele. Ouço uma voz braba que me ordena terminar rápido o banho para que não se atrase. Fico irritada pela primeira vez. Há dois banheiros, mas ele quer usar este. Perco um minuto e meio entre o me enxaguar com rapidez para que ele não se atrase e o seguir no meu ritmo porque, afinal, há dois banheiros nessa casa. Mas ele quer usar este. Algumas coisas se estabelecem em um conforto difícil de mudar. Este banheiro é sim mais agradável, a janela observa o céu que acabou de acordar e ainda boceja, espia uns pássaros a procura do café da manhã. Eu sei que tumultuo quando estou aqui. Atrapalho a rotina com a minha desrotina de férias. Eu sei que ponho a chave no chaveiro enquanto era para largar na mesa. Sei que troco alguns copos de lugar. Mas filha do meio inventaram pra isso, não é? Guardo o restinho de irritação que logo foi embora só para que ele me veja com a cara fechada. Faço isso porque não posso deslizar e sorrir, não nesse horário da manhã, não agora que ele acabou de acordar e espera sentado como uma estátua-viva-muda na cama do quarto do banheiro que eu saia o quanto antes do chuveiro. Evito olhar para os seus olhos raivosos porque eles chegam carregados com uma expressão de “ê, minha irmã, você me bagunça e eu estou com raiva, mas eu acho graça disso tudo e gosto de ter você aqui com seu jeitinho desse jeito aí”. Sim, o caçula consegue me mirar com raiva e com carinho ao mesmo tempo. E isso, isso bagunça eu.

Segunda dica: Não fale com ele quando ele acabou de acordar.

Ficar longe de todos eles me dói na pele. Sinto falta dos aromas, das amoras. Sinto saudade do meu avô cortando frutas e limpando as unhas com o mesmo canivete. Da minha avó com sua crença bonita na vida, apesar das dores crônicas. Da minha tia quando a muralha que carrega para que ela não desmorone, desmonta. Da minha irmã com seu carinho materno e seu olhar de sempre vou cuidar de vocês. A simplicidade do meu cunhado que completa a vida e deixa ela mais bonita. Sinto saudades da força da minha mãe e do cheiro dela no travesseiro que roubo para dormir. Do meu pai, a felicidade carinhosa que quer dizer eu te amo sem que ele diga. As vezes estar longe dói tanto que os pelos dos meus braços caem.

Terceira dica: Isto não é uma dica: Ele te surpreende.

Quando os pelos dos meus braços estão no chão um abraço chega de longe. Esse cara dançando sob a água no meio da calçada me lembra você. Lá, eu estava na estrada e apareceu um arco-íris lindo. Ele voltava pra nossa cidade. Um dia cheio de causas, ações ou sei lá como se chamam essas coisas de injustiças. A estrada estava só para ele. Fim de tarde e seu coração foi tomado de colorido. Da esquerda de grama verde até a direita de casinha no meio do mato. Era um arco mesmo, de cores. Os arrepios de emoção que sentia foram aumentando conforme o arco-íris se aproximava. Ele diminuiu a velocidade do carro porque não tinha pressa em essa cena terminar. Foi que foi e foi chegando cada vez mais perto. Surpreso e plenamente feliz ele passou por baixo do arco-íris. O meu irmão mais novo, o caçula, passou pelo meio das cores que se formam no céu. Quando os pelos dos meus braços já estão no piso do quarto um abraço chega de longe em forma de ligação e ele me conta tudo isso. Foi a coisa muito linda, foi uma das mais lindas que eu já vi naturalmente assim, de fenômeno.

Dica quatro: Tem experiências que transcendem explicações.

Quando repliquei infinitamente essa história sobrancelhas erguidas me olharam. Passar no meio do arco-íris não é possível. Sinto por essas pessoas que acreditam estar longe o arco-íris. São as mesmas que não acreditam que os gatos choram.

Dica cinco: Foi a coisa muito linda, foi uma das mais lindas que eu já vi naturalmente assim, de fenômeno.




                                                            Foto: meu caçula

sábado, 7 de março de 2015

Convite

Estávamos em um hotel. O lugar era grande e diferente do que estamos habituados. Hospedados em outro quarto, apesar de estarmos no nosso bairro. Nós saímos e bebemos um pouco.

Tá vendo aquela casa? É de um arquiteto aqui da cidade. É uma casa dos anos cinquenta que foi inteira restaurada, tem um ateliê incrível lá dentro. É que o marido do arquiteto é escultor. Não, nunca entrei lá. Um menino que trabalha comigo, é, menino, ele sempre conta isso quando passamos por aqui e aí tô te contado agora.

O dia já dormia há horas.

Essa rua é tão bonita. Eu gosto quando as árvores se encontram no topo, no meio, ali no alto. É que essas árvores são casais apaixonados, mas há muito tempo alguém as separou com esse asfalto no meio. Aí com saudade umas das outras elas foram crescendo pra ficar pertinho assim. O que, essa história? Ah, é minha mesmo. Inventei esses dias, mas é tudo verdade.

Tinha um karaokê no caminho pro hotel e a gente resolve entrar. Cantamos clássicos da nossa adolescência e uma música de amor. A gente ainda não sabe se é amor. Eu acho que é cuidado. O gelo seco deixa o ambiente ainda mais escuro. Um escuro bom, escuro sedutor. Escuro branco e te perdi na fumaça. Ali está você. Sorrindo com os olhos fechados aspirando profundamente.

Na volta, você apertou o último andar, mas estávamos no terceiro. Você ria como quando um bebê descobre os sons que a boca pode fazer. Ríamos juntos.

meus olhos fechados
estou aberta
encosta tua boca aqui devagar. Gosto quando tua franja escorrega no meu seio quando você me lambe uma orelha e só o lado esquerdo do meu corpo arrepia gosto quando cafuné.
minha pele excitada
sua língua atuante
fios dos cabelos entre os dedos
respira assim na minha nuca. Gosto quando tua mão me surpreende quando teu corpo quente assusta o meu mais frio gosto quando carinho.

Deixamos a janela aberta. Você me confessa sua primeira paixão: a trapezista do circo. Eu morava no sítio e em outubro dos meus seis anos de idade o circo visitou a cidadezinha próxima. Meus pais me levaram, eu e minha irmã. Fiquei encantado. Ela foi anunciada como o principal show da noite. Ou eu que achei o show dela o mais belo. Ela entrou sem que ninguém pudesse ver porque soltaram muito gelo seco no ar. O cheiro do gelo seco. Eu me lembro do cheiro do gelo seco. O branco foi sumindo e ela aparecendo. Apareceu bonita com um maiô cor-de-rosa cheio de glitter. Subiu com elegância até o teto de lona e se soltou com maestria. Levei as mãos à boca num suspiro de medo. Pensei que ela, tão linda, fosse cair. Aquele dia aprendi que a gente pode voar.

Dormimos entre os lençóis e a lua. Acordo com a brisa da manhã que voa a cortina até que ela encosta em meus pés. A cama fica perto da janela e sinto o frio calmo da primavera. O vestido está longe e não encontro minha calcinha. Me aqueço com sua camiseta e me aconchego na sua silhueta.

Eu viveria uma sucessão de domingos aqui. Quando os domingos vêm acompanhados, eles são bons. São domingos dourados.
me aperta assim devagar. Gosto quando me aperta assim devagar. Gosto quando fica.