quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Cidade natal

A banda é composta por eu, Fernando e outro Fernando. E nós ensaiamos por anos para estar aqui hoje neste tablado de madeira com cortinas coloridas de chita. Para estar aqui hoje tocando Jazz para a garota a escrever anotações iluminada de amarelo.
Mentira. Nós nunca ensaiamos. Nos encontramos ali no bar abaixo do ponto turístico principal dessa cidade e escolhemos interagir por meio de baquetas, palhetas, cordas, notas, baquetas, palhetas, cordas, notas, ritmos e partituras não.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Festa à Fantasia

Fui convidada para uma festa à fantasia. Não sei que personagem escolher. Não quero ir de Branca de Neve porque eu não como maçã. E se comesse, a envenenada, morreria pra sempre. Não nado tão bem para me transformar numa Pequena Sereia e nem quero perder minha voz para ter uma calda flutuante que talvez sangrasse com o sal do mar. Não tenho a paciência de Rapunzel para esperar meus cabelos crescerem e nem bela voz para cantar quando há tédio. Se grandes tranças tivesse as usaria para voar. Correia até o topo mais agudo do morro mais alto que fica mais longe e me deixaria cair. Caiiiir, caiiir. O vento bruto de baixo pra cima me ergueria o vestido de princesa e taparia toda a minha visão. Irritada e em plena queda eu daria um jeito de despregar os botões pra que o vestido de princesa passasse direto por mim, subindo até a minha cabeça pra se perder em alguma árvore quando, depois de quase atingir o topo mais agudo do morro mais alto que fica mais longe, encontrasse a gravidade outra vez. E então, sem vestido pesado de princesa sentiria as aconchegantes cócegas das nuvens, o cheiro das flores nos meus seios e o volume dos pássaros nos meus ouvidos. Com as tranças desfeitas e o perigo do chão se aproximando meus cabelos castanhos, e não loiros como imagino envenenada pelas histórias-Disney enquanto escrevo este trecho, se transformariam numa cama que resguarda meu pouso. Como rede eles se colocariam entre duas árvores para eu respirar ali o fôlego da viagem que é cair do topo mais agudo do morro mais alto que fica mais longe e não morrer.

Fui convidada para uma festa à fantasia e não sei qual personagem escolher. Não quero ir de Bela Adormecida pra não correr o risco de perder a festa e ficar a noite toda em casa. Dizem que a Bela, a outra, gostava de ler. Quem sabe eu não encontro uma Fera na tal festa? De Cinderela não tem como porque eu não tenho madrasta e nem falo com passarinhos, ratinhos e esquilos da floresta. Se falasse procuraria a resposta pra pergunta que me insônia: onde encontro o filete de calma que perdi no caminho da rotina?

Fui convidada para uma festa à fantasia e não sei qual personagem ser. Conversando com uma amiga naquela rua que não passam carros e conversando com a mesma amiga tomando suco de framboesa, a minha amiga que estava comigo na rua onde não passam carros tomando suco de framboesa disse sei lá, não tenho nenhuma ideia de fantasia pra você ir na tal festa à fantasia. Pensei em ir de espiã no momento em que o último gole gelado de framboesa caía no meu estômago quente. Eu vou de espiã nessa festa à fantasia para investigar onde encontro o filete de calma que perdi no caminho da rotina.

Fui convida para uma festa à fantasia e não sei qual chave quebrada. Chave quebrada.

Chave.

Quebrada.

A minha chave está quebrada na porta do apartamento. Eu nem vi isso antes e nem sei o que fazer com isso agora. Eu poderia ligar para um amigo, quem sabe para um chaveiro. Tudo indica que tenho instrumentos físicos e raciocínio mental para tal. Mas não. Eu nem sei como essa chave se quebrou. A minha chave está quebrada na porta do apartamento. Devo ter ficado uns vinte minutos com as costas curvadas reparando na nova rachadura da porta segurando metade da chave na mão. (É que quando respirei mais profundo doeu no pulmão. Acontece. Quando se fica com as costas curvadas por pelo menos uns vinte minutos com metade da chave na mão reparando na nova rachadura, ou na nunca antes reparada, falta ar entre as costelas e elas demoram a se expandir outra vez. Então, até que se acostumem com o ar entrando no meio dos ossos dói mesmo. É preciso respirar fundo várias vezes).

Seguro na mão a outra metade da chave e olho com testa enrugada para a porta. Eu nem sei como essa chave se quebrou. É impossível sair, visto que essa é a única passagem desse metro quadrado que me serve de moradia. Eu nem sei quando o meu pensamento se curvou. Do olho mágico eu vejo um pedaço da janela que fica no fim do corredor. Da janela eu vejo um pedaço da construção que fica no fim do corredor. Dentre os tijolos há boas camadas de cimento preso. Eu vejo concreto na cara do vizinho que está levando seu cachorro para um passeio. Concreta eu parada feita uma porta. Essa porta! Presa eu entre o lado de lá e o lado de cá feito o coitado do cimento. Minha testa enrugada respira apoiada na tal porta enquanto minha mão, a mão que segura a outra metade da chave, continua ao alto, próxima ao meu rosto de olhos fechados que ainda não encontraram o filete de calma perdida.

Fui convidada para uma festa à fantasia e acho que hoje vou fazer aquelas panquecas de salivar a boca. Comer, dormir e aguar as plantas. Ver um filme e não lavar a louça. A minha chave está quebrada na porta do apartamento. A minha clave está confusa no meio de tanto instrumento.

Tem outro vizinho passando com outro cachorro.

Quando o braço que tem a mão que segura metade da chave já estava entregue ao peso de estar no alto, reparei no namorado que saiu correndo atrás da namorada. Ele ainda vestindo a camiseta. Ela puta bateu com força o portão do meio lá embaixo, e a vibração de sua raiva direcionada aos seus músculos numa intensidade tal capaz de tremer o portão ao fechá-lo subiu pelas vigas internas do prédio antigo, percorreu rapidamente as paredes esponjosas e vibrou a porta do meu apartamento que tinha nele repousada: a minha testa. Ai.

073

Eu desci. Desci do ônibus. Desci do ônibus sem saber onde estava. Desci do ônibus num ponto desconhecido embaixo de um viaduto. Primeiro quiseram que eu pagasse por um programa. Segundo, acharam que eu é que daria minha bocetinha por dinheiro. E eu só queria correr pro ponto de ônibus de onde vim e onde te deixei chorando.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Joana e os olhos raivosos

Joana agarrou o lápis com precisão. A ponta de grafite já não estava na espessura ideal para finalizar o risco fino do desenho. O detalhe da íris colorida em preto e branco daqueles olhos exigia destreza. E um lápis bem afiado. Joana apanhou com firmeza o estilete.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Expresso

Dois, por favor.
- Eu tô quase terminando o artigo.
- Falta muito?
- Não, só colocar nas normas, aquela chatice toda.
- Mais trabalho braçal que intelectual.
- Com licença.
- Ah, obrigada.
- Você?
- Eu?
-Não, ela.
- Ah, claro. Desculpe.
- Nada, que isso.
- Que que tem eu?
- Como tá lá na sua casa?
- Uma droga. Cada vez pior. A gente nem se fala direito, eu tô no limite. Nem parece que moro com alguém, a gente não compartilha mais nada. Nenhum sabe o que tá acontecendo direito na vida do outro.
- Nossa, não deve ser fácil mesmo.
- E não é. Só que eu fico tão envolvida com outra coisas também, com a minha produção que deixei a situação chegar no insuportável.
.


-Me falta coragem.

- E quando você vai falar?





- Meu café. Acabou.

- É, o meu também. E já deu minha hora.

domingo, 18 de agosto de 2013

Professora

Esquecerei em cada vírgula do seu corpo os pontilhados dos meus dedos
O suor do meu prazer percorrerá os detalhes de suas linhas e fará borrão de suas reticências
O vermelho de meus lábios manchará sua pele feito tinta no papel
A firmeza do meu pincel vai lamber seu corpo-tela-branco

Me deixa rasgar seu envelope
Romper o zíper de seu penal
Arrebentar o elástico de sua pasta

O molhado da minha língua rumo à sua é objeto direto do meu tesão
Verbo intransitivo da minha mão na sua margem
O grafite lambuzei na página sua, nua
Não haverá hipérbole que possa falar do parágrafo que te convidarei


Me deixa rasgar seu envelope
Romper o zíper de seu penal
Arrebentar o elástico de sua pasta

O selo da carta pregado com a minha saliva
O lápis de desenho cócegas fazendo na sua orelha
A gravura proibida
A moldura escolhida
Verbos de ligação grudando nossas peles
Rimas nas nossas línguas

Dessa história nos sobrou o pretérito-mais-que-perfeito

Me deixa rasgar seu envelope
Romper o zíper de seu penal
Arrebentar o elástico de sua pasta

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Uma historinha


Sempre que o oi casual vinha acompanhado, e ele sempre vem, daquelas duas miúdas palavras inofensivas seguidas de um ponto curvado pra eu responder sim e você, um calo no meu pé crescia.
Sempre que o oi casual vinha acompanhado, e ele sempre vem, daquelas duas miúdas palavras inofensivas seguidas de um ponto curvado pra eu responder sim e você, eu respondia só o sim pra não ser cruel e devolver a pergunta mais perturbadora ao meu interlocutor.
Sempre que o oi casual vinha acompanhado, e ele sempre vem, daquelas duas miúdas palavras inofensivas seguidas de um ponto curvado pra eu responder qualquer coisa que seja porque não faz diferença para o meu interlocutor, meu óculos embaçava.
De óculos embaçado e calo no pé eu caminho mancando e tropeçando nos pequenos paralelepípedos fora do lugar.
Até hoje.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Uma mancha de caneta no meu peito

Aconteceu de nos beijarmos um dia.
 
 
 
Você esqueceu seu cheiro no meu travesseiro e eu já nem me lembro quando deixei você entrar aqui. Agora você está aqui, mesmo quando eu quero dormir sozinha.
Da próxima vez nós vamos pra sua casa e será a minha vez de esquecer. Uma meia calça de verão, um perfume no banheiro. Meu batom vermelho bem em cima da sua cama. Um coração desenhado no vapor do chuveiro. Minha citação favorita no seu caderno de anotações e um desenho que gosto de um artista que gosto na tela do seu computador. Meu desastre deixou cair uma gota de esmalte no seu lençol, desculpa. Em compensação desci para o reciclável todas as garrafas do nosso fim de semana. Eu esqueci meus discos aí, posso passar pra pegar? Eu quis esquecer meus discos aí pra perguntar se posso passar pra pegar. Passei na frente de um supermercado e uma garrafa de vinho pulou na minha bolsa, vamos beber?
 
Da próxima vez nós vamos pra sua casa e será a minha vez de esquecer. A calcinha que você me tirou ainda no corredor. Um chiclete mascado na luz do seu abajur. Estorou. Desculpa. Vou deixar o meu cheiro na camiseta da sua banda favorita. Mentira, você nem consegue escolher apenas uma banda. É uma pergunta injusta, eu sei. Ok, não faço mais. Não faço mais essa pergunta sobre qual é a sua banda favorita. Não faço mais aquela salada que você não gosta. Não falo outra vez sobre como prefiro o cinema vazio. Nunca mais corto as unhas em cima da cama, nem deixo meus sapatos no meio do quarto. Não chego de surpresa. Não te acordo com suspiro. Não coloco a minha língua na sua orelha. Nunca mais cobro aquela visita.
 
Da próxima vez nós vamos para a sua casa e será a minha vez de esquecer. As anotações de papel essenciais para o artigo que estou escrevendo, droga! Meus brincos no seu livro de cabeceira. Meu colar de envelope entre os últimos CD's que escutamos. O carregador do celular. Minha bagunça nos frascos do seu banheiro. Meu beijo colorido no seu pescoço. Meu rascunho entre os seus.
 
 
Da próxima vez nós vamos para a sua casa e será a minha vez de te esquecer.
 

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Artura

Artura nunca teve um mal-estar físico de dor tão aguda assim. Mas na última semana seu estômago estava de ponta-cabeça. Que borboletas, que nada. Nem libélulas, nem beija-flor. Está mais para arara, pica-pau, pombo sujo da Praça Santos Andrade, mosca morta, vespa verde. A comida entrava e ali parece que ficava por horas. Alimento preso no estômago torto, no estômago sujo. A água ebulia lá dentro.


Parou de comer. 

Artura no plantão do hospital com soro tomando. Já não bastasse o estômago estranho e vieram as picadas nas veias que sumiram. Derreteram ao perceberem a aproximação da agulha que fincou várias vezes como alfinete fino que escapa e se aloja entre a unha e a carne.

Ela disse que doeu.

Marcaram a radiografia para o dia seguinte. E seu estômago pesava cada vez mais. E mais. Pesou tanto que no curto caminho entre a cama e o banheiro gelado precisou ir sentada. Arrastando a bunda no chão. Limpando o piso poluído da enfermaria. Quando se deitou novamente a cama caiu, tamanho o peso de seu órgão. Dormiu ali mesmo porque não quiseram arriscar outra cama estragar. Pouco tempo durou seu sono cansado. Artura foi despertada por uma forte ânsia que escapou.

Vomitou. Vomitou. Vomitou.

Mas que estranho! Que caso interessantíssimo! É uma incógnita! Quanto mais vomitava, menos ela pesava. Quanto mais de si saía, menos em si de alivio ela cabia. Da boca do estômago de Artura não saiu comida, não saiu suco gástrico. Saíram letras. Sim, letras engolidas de palavras e frases não ditas. Letras tortas, letras bravas, cansadas, exaustas, raivosas, explosivas, chorosas. Leras pretas, vermelhas, roxas. De confusas no chão elas se erguiam decididas no ar. Leu-se dor, leu-se tristeza, insegurança. Palavras soltas e frases inteiras. Até um poeminha assim:

A lágrima que engoli
virou pedra no meu estômago
Aquilo que esqueci
tornou-se ácido no meu estômago
O beijo que não dei
apodreceu no meu estômago
O dia em que falhei
transformou-se em noite no meu estômago

O poeminha, as frases e as palavras depois de escritas no ar gargalharam bem alto assim: rá-rá-rá, rá-rá-rá! Ah, Artura, você atura muita coisa!






quinta-feira, 27 de junho de 2013

duros cílios

Brinco de boneca. Brinco de boneca na orelha ou brinco de brincar de boneca? Boneca tem vida quando brinca. Pode ter vida sem brinco. Quando não brincamos com elas, elas ficam


assim: sentada na cadeira torta a boneca ou a cadeira? Olhando pro teto. As mãos de dedos abertos. Paradas, mas expressivas. Se você brinca com elas, expressivas, se não brinca com elas, pausas aterrorizantes.

Voltei do Cream Porter e do Irish Red. Voltei da brincadeira de te encontrar. Voltei da brincadeira de te procurar. Ainda busco no esconde-esconde de mim. Alguém pra balança caixão balança você dá um tapa na bunda que vai se esconder? Alguém pra unidunetêsalamêlinguê o-sorvete-colorido-escolhido-foi você?

Voltei do sangue como água no meio-fio e voltei do medo de ser estuprada no meio. Da rua.

Caminhar no amarelo dos postes da noite. Caminhar reparando só no chão de minúsculos paralelepípedos. Caminhar reparando só no topo, no topo, no terraço, no alto dos prédios. Caminhar no céu preto com alguns focos de brilho. Coma o brilho. Qual o fosco que te transluz? Caminhar nas digitais lupadas, de lupa, dos meus dedos. Ontem tinham menos rugas. Ontem tinha menos tremor. Ontem tinha mais sangue.

É que o sangue no meio-feio. É que tinha espuma de sangue na água do meio-fio.

Sonhei com uma agulha de soro-que-me-cura-me-cura-?- fincada no pé. Direito. No pé que caminho direito. Doeu a veia verde saliente do topo do pé. Da superfície do pé. Da superfície. da pele.


Explodiu a veia. Véia. Explodiu a veia do topo da pele do pé. Puxei o rabo do tatu, quem saiu fui eu. Quem roubou pão na casa do João fui eu. O terceiro que a Terezinha deu a mão fui eu. A ligação que caiu fui eu.

domingo, 9 de junho de 2013

Dois pontos

- Você nunca pegou ônibus, né?
- Não.
Quer dizer, já. Mas não aqui.
- Pra onde você quer ir?
- Pro começo da estrada.
Quer dizer, pra rodoviária.
- Eu tô com um tempo livre. Vem que te acompanho.
- Da pra ir caminhando?
- Não é muito perto. Mas também não é muito longe.
Aquilo foi um sim. Ela entendeu e logo seguiu uma direção. Era a direção errada, mas ele preferiu ir pela empolgação dela. Depois arrumava a ordem do caminho.
Exercício difícil não pensar que ele estava com uma estranha e como assim? Eu nunca imaginei tamanha proximidade com quem nunca vi. Mas optou por tentar desativar o superego e é isso aí. Concluiu que o nó entre seus quase dois metros de altura e a delicadeza do pequeno tamanho da desconhecida estava levemente frouxo, mas feito. Afinal, quem corre maior perigo ali é ela. Eu sei que cidade é essa e por onde ir.
Mas será que sabia?, pensou eu que acabei de inventar essas duas pessoas. Até parece que a baixinha compartilha minha hipótese, já que
- Por que você não relaxa? Acho que você tá tenso.
- É.

Pausa. Pausa para ele desanuviar suas ideias aprisionantes e perceber que para ela é inevitável olhar pra cima. Os topos dos prédios, o cara escovando os dentes na janela, as roupas ainda esperando o sol, as tags, a planta que escapou do concreto, o edifício aceso da empresa que nunca para de trabalhar, a música sanfonada da sociedade portuguesa, aula de dança de salão, a luz colorida-brega da boate de terça-feira-quase-noite, a coruja no chão.
Pausa para ele se hipnotizar com o novo ao seu lado e, com o novo, se descuidar e tirar as mãos do bolso, escancarando que elas estavam roxas. Roxo escuro. Roxo pancada. Roxo hematoma.
- O que aconteceu?, recebeu a pergunta assustada.
O roxo hematoma das mãos saiu do peito, do preso que fugiu do coração. Foi pra onde todo mundo vê porque sua boca não diz e sua voz cala. A cor era tão intensa que abandonei por instantes a taça de vinho. O roxo hematoma das mãos saiu do peito, do plexo e pulou pros dedos que são obrigados a se relacionar. Ela agarrou uma de suas feridas e a segurou como quem segura um tesouro.
- Que horas sai seu ônibus?
- Não sei. Não tenho um ônibus pra pegar.
- Mas você não tá indo pra rodoviária?
- Sim, mas ainda não sei pra onde vou. Sei pra onde quero ir, mas não sei pra onde vou.
- Posso então te levar pra um lugar que gosto muito?
Aos sons de tijolos esbarrados e risadas algumas eles pularam o muro.
- Eu nunca invadi qualquer lugar antes.
Era a vez de ela mostrar uma franqueza. Subiram vários andares no escuro tomando cuidado com a fenda do elevador que nunca foi posto ali. Ela estatuou ao ver a cidade do alto e seu fim no horizonte.
- É bonito aqui. É lindo.
As confidências compartilhadas e os segredos divididos se assustaram com a repentina interrupção. Ele vomitou em meio a uma frase. Vomitou roxo o que não comia há dias. Há tempos seus órgãos não sentiam alívio e seu sangue até se esquecera da sensação tranquila de percorrer as veias sem entraves subjetivos ou existenciais.

- Obrigada pela companhia.
- Obrigado pela sinceridade.
Um abraço tão genuíno e caloroso que senti minha pele amortecer.
- É, acho que seu ônibus está saindo.
- É. Tchau.
Ele se recordou de tudo enquanto caminhava até sua casa e ao abrir a janela da sala desabafou:
- É bonito aqui. É lindo.
Ele, que já havia se habituado à composição daquela arquitetura com o céu, estalou os olhos ao reparar naquela cor que sempre esteve ali. Era uma cor que estava todos os dias, mas não era a cor de todos os dias. Ele até esqueceu o casaco cinza para se embriagar com o calor que o azul forte proporcionava. Os pelos altos de arrepio chegaram a dormir. No mesmo instante em que ela carregou as pálpebras pesadas em direção às sobrancelhas para se perder no céu escuro. No verde rasteiro e silencioso encoberto pela luz redonda e imponente que vinha do céu.
As mãos dele estavam brandas. Os olhos dela choraram doces alegrias saudosas. Eu finalmente respirei até os bronquíolos.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Coreografia


E sete oitoooooooodespertador toca em intervalos minúsculos de agudo fino. E sete oitoooooooodespertador toca em intervalos minúsculos de agudo fino bem onde se aloja a glândula tireoide. E toca. E pulsa. E pulsa em intervalos miúdos de agudo fino em cima do meu coração ofegante e quente. Faz tempo a última vez que pratiquei corrida que está minha rotina. Quando finalmente chego em casa saltito entre as roupas e calçados espalhados pelo chão. Dou mini-pulos como que fugindo dos pregos que me atravessam de baixo pra cima. Dou mini-pulos como que fugindo desses pregos até encontrar minha cama. Ali, naquele canto escuro onde a luz do sol não bate o mofo aparece. E sete oitoooooooodesespero quase me alcança quando tento trabalhar num movimento interessante para a minha cena e os bichinhos das árvores não deixam. Eles também querem participar. Mas eu fujo deles. Agora com grandes saltos como se evitando a fenda profunda recheada de água da montanha mais alta. Olho para o teto. Olho para o teto com infiltração. Não como que me infiltrando nele, mas como a infiltração saindo dele. E penso que tô tentando tirar algumas infiltrações de mim. A dor do siso.  O amor que já morreu pra ele. A preocupação que tenho com todos eles. A espinha inflamada. Preciso ir ao banheiro, mas cansada dos mini-pulos para fugir dos pregos que me atravessam de baixo pra cima vou pelas paredes mesmo. Me agarro a elas e elas me sugam. Me engolem por todo o quarto e me cospem só na porta. A água boa do chuveiro cai com força massageadora nos meus cabelos que lentamente a sentem e aí sim ela chega ao coro cabeludo que se arrepia até os pelos dos braços com a visita esperada. E sinto as costas todas molhadas. As pernas ainda não porque o tamanho da minha bunda desvia um pouco a rota do chuveiro. Meus pés deixam de ficar secos dos calcanhares em direção à curva que faz, em direção aos dedos. Quando termino o banho me seco razoavelmente, visto uma camisola sem calcinha que quase umedece, esqueço de escovar os dentes e me conforto com o cobertor macio. Sete oitoooooooo nove dez onze carneiri...

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Panul

Tenho duas taças de vinho vazias. Em uma delas escorre levemente até o fundo do vidro alto o óleo roxo que escapou da minha boca. Minha boca que com a língua tocando todo o céu de dentro de mim engoliu a uva derretida. Minha boca agora vazia sem a cor escura e docemente seca. Minha boca agora vazia sem outra língua pra ocupar o espaço que me sobra. Me sobra conforto no colchão. Me sobra um lugar ao meu lado no teatro. Me sobra o vácuo na boceta. Me sobra escolher qual o disco que vai tocar agora. E o próximo. E o de depois. Me sobra uma garrafa incompleta de vinho. Minha sobra de espaço no horizonte sem fim. Tenho duas taças de vinho vazias. Tenho duas taças de vinho vazias que desfrutei só. A de ontem estava suja porque logo dormi embebedada pelo som da vitrola e pelo cansaço das horas. A de ontem estava suja, então fui diretamente ao armário buscar a outra. A de ontem e a de hoje. Ambas sentiram o mesmo peso dos meus lábios. Ambas confidenciaram a minha mesma busca perdida. As duas descobriram pela textura da minha saliva a dúvida que repito há tanto tempo. Essas duas mesmas taças quiseram me acariciar ao perceberem o toque grosso dos meus dedos. Elas refletiram meus olhos pouco esverdeados, é verdade, perdidos firmemente num pensamento preciso, pontual e sem rumo. Ao encostá-las em meio peito enquanto relaxava elas descobriram que meu coração já não pulsava mais. Não pulsa pra pedir ajudar. Eu não pulso pra pedir ajuda. O formigamento da minha boca mostrava a constante inconstância do que toca aqui dentro. O formigamento da minha boca tremeu tanto que trincou as taças. As duas. Ambas. Essas duas mesmas taças de seguidas noites no meu quarto. Com elas trincadas, desfaleci sozinha em cima do meu travesseiro. E durante a noite minhas unhas, minha pele e meu cabelo. Trincaram também. Timtim.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Ensaio 2

O sotaque do meu corpo. As flores que murcharam todas. Os ares comprimidos no meu coração. A serra. A britadeira. O martelo. O ruído agudo, ora soco, do prédio parindo. Os ares comprimidos comprimindo minha respiração que sai aos poucos socos bem diferente do soco da construção do soco que levei na boca do estômago sem querer quando eu estava na quinta série. A quinta vez que a serra espirra fiapos nos meus olhos. A britadeira caminha na minha frente destruindo meu chão. Em obrigando a pisar nos escombros de mim mesma. Despedaçado logo ali. 

Paro tudo isso. Esqueço o barulho do motor do caminhão e sentada no banco da calçada olho para cima. Olho de cinema. Trocaram as janelas deste prédio e lá na ponta entre a árvore e o concreto vejo as nuvens brincando de corrida. Corro de mim.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Abelha

O segurança do Paço ouviu um pedaço da nossa história sem querer. Ele quase acreditou que aquela conversa foi simpática e não estranha ou sem jeito. Depois do oi rápido passado reto não fosse


- Bonito seu óculos. 
- Ah, obrigada. Você agora também tá usando. 
- Então. 
- Mas eu uso só de vez em quando. 
- Então tá bom. 
-Tchau. 


O seu sorriso simpático social. Sua incrível amabilidade depois de um show em que você fugiu do meu lado. Seu mel vem com ferrão. Sua incrível felicidade depois de um show em que a cabeça do cara da minha frente serviu de escudo pra eu não te ver. Logo ali, no outro lado, na frente do piano. Minhas dúvidas que parecem infinitas e minhas perguntas que nunca poderei satisfazer depois de um show em que nos escondemos pela cabeça de alguém. Minha garganta arranhando, tossindo porque sempre ficam coisas caladas. O envelope no meu peito carregando no pingente uma carta que quer falar. Mas não pra você. Não depois de um show que se estivéssemos juntos poderíamos sair dali e nos casar no próximo domingo na praia, no sol, no mar, ou num navio a navegar, num avião a decolar, indo sem data pra voltar. 

Eu voltei. Pra minha casa, minha taça de vinho. E pra escrever esse texto. Você eu não sei. Só sei que não pensou em mim.

domingo, 27 de janeiro de 2013

Saudade

Estava na cama já fazia dezenove horas seguidas. Vontade de levantar? Não tanto assim. Mas ainda havia algo saudável naquele corpo e naquela mente. Ela ainda se prezava de alguma forma. Ela não se abandonou. A bexiga não conseguia mais guardar o mijo que saiu depressa, quase antes dela conseguir abaixar a calcinha fedida e se sentar no vaso. Quantos dias sem banho? Ela nunca contou. Tempo pra ela é outra coisa. 
E ela pensou que tem vezes que o dia seguinte é exatamente o que não precisamos. Ele amanhece só pra nos lembrar de que mais uma vez não deixamos aquela frase escapar, quisemos e não fizemos. O dia seguinte nos lembra de que depois de tocar a campainha, a coragem faltou, fugimos. O dia seguinte lembrou que a vontade ainda é a mesma: amar-te mais uma vez e, quem sabe, por muitas vezes mais. O dia seguinte lembrou que a vontade ainda é a mesma: Abraçar-te, meu querido. E te ninar, meu amor. 
Semanas, semanas, semanas e semanas dentro do quarto. O apartamento estava repleto de copos sujos, guardanapos jogados no chão. Cheiro forte de cigarro com whisky vagabundo. Havia tanta bebida naqueles apertados metros quadrados. Tanta sujeira. Fedor de depressão, de angústia. Uma cena de descuido próprio. 
Umas dez ou doze mensagens na secretária eletrônica. “Oi! Que saudade de vocês! Eu chego no Brasil daqui umas duas semanas. Eu ligo, beijo. Olá, quer ganhar descontos de 50% com o se... Consegui transferir seu pai pro HC daí. Filha, eu to indo te ver”. 
Teve que acender a luz do banheiro porque ainda era madrugada. Quando ela se viu no espelho, se assustou. Mas os olhos fundos faziam jus à boca com gosto de remédio, ao estômago cheio de café e aos cinzeiros espalhados repletos de bitucas de cigarros. Apesar disso, não se reconheceu. 
Tirou a roupa suja de vinho e com manchas de café. Fazia frio, mas quis uma ducha gelada. Ela já havia se esquecido do som do chuveiro. Entrou com o corpo de uma vez só. Ela berrava, a água doía até nos seus ossos finos. Ela berrava e batia no próprio rosto. Barulho de água caindo. Mais berros. Ardidos estalos de mão fria que se chocava com o rosto branco machucado. Ela berrava. 
Tremendo desligou a ducha. Subiu molhada na patente agora molhada. Alcançou o chuveiro. Água quente. Ligou o chuveiro mais uma vez e se aqueceu embaixo dele. O berro cedeu lugar a um gemido de alívio. Ela começou a chorar. Ficou mais uns quinze minutos ali, a água escorrendo pelo ralo junto com suas lágrimas de dor. 
Esqueceu a toalha como se esquecera qual foi a última vez que quis falar com alguém. O corpo encharcado escorreu água pelo piso frio do banheiro, pelo corredor e pelo quarto. Ela pegou uma toalha felpuda e embolorada e se secou rapidamente. Fazia muito frio. A casa estava fria. Aquele lugar não a acolhia mais. 
Pôs uma roupa bonita, se perfumou, colocou aqueles brincos, pegou aquele livro de histórias e voltou pra sala. Acendeu mais um cigarro. Encheu o copo novamente. Dessa vez, conhaque. Conhaque com café. Um a um, ela recolheu os porta-retratos que estavam quebrados no chão e os que estavam de costas pra ela em cima da estante. O choro incontido incontrolável veio sem perguntar se podia. E eu me enganei quando disse no começo que ela se levantou por se prezar de alguma forma. Ela se levantou, se banhou e se arrumou para encontra-los. Ali. Na sala. Quebrados no chão. Intensos na memória. Bebeu mais um gole. Olhando as fotos agora apoiadas no seu corpo ela tragou rapidamente. Os olhou com carinho. Tirou os cacos de vidro de cima deles, afagou seus rostos no papel. 
Limpou o rosto molhado, fingiu felicidade e “era uma vez...”... ... ... ... ... ... 

A dor era assim reticente sem fim. Ela não tinha mais o que chorar. As lágrimas secaram de tanto que caíram. Permaneceu sentada no chão com as lembranças ao redor. 
Ouviu barulho de chave na porta e permaneceu imóvel como estava. O olhar longe, o sentimento doído. Era sua mãe. Ela pôs a filha no colo que continuou calada. Mesmo quando recebeu um beijo na testa e um aperto caloroso. Depois de alguns minutos, de repente, como se só agora sua mãe tivesse chegado ela gemeu enquanto o choro voltava e ela a abraçava: “mãe, ai mãe”. 
E as duas ficaram ali, abraçadas, agarradas. Assim como mãe agarra cria e cria agarra mãe. Pela janela grande elas ficaram olhando a bastante chuva que caia fina em paralelo.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Fermento

Quarta-feira. Noite. Céu cinza claro enganando os despercebidos que não se atentaram para a hora que já era tarde. Noite. Céu cinza claro. Os dois sentados na mesa da cozinha de azulejos-losangos-azuis-pequenos. Cerveja pra acompanhar a conversa. 

- Faz tempo que eu não bebo 

- Não acredito. 

Ele esvazia o copo. 

- Faz tempo que eu não bebo com alguém. 

- Ah, sim. Faz tempo também que eu não bebo acompanhada. Só com minhas amigas mesmo. 

Ele diz que tem bebido bastante em casa. Finge que acredita que o álcool ajuda em alguma coisa. Ela sabe que ele finge. Ela divaga que no começo sim, a solidão é mais rasa quando bebemos. Mas e quem bebe sozinho? ele pergunta como que procurando uma explicação feminina pro seu repetido ritual diário. Pega de surpresa, ela pensa e 

- O que você quer ver no fundo do copo? 

- É uma boa pergunta. Difícil responder. Na verdade ele não quis arriscar dizer. Não quis responder pra si mesmo o que ousava saber. 

- E você? O que vê no fundo do copo? 

Ela se estatua por um tempo. Parada, reflete. 



- Não. Não vejo nada. Porque ainda tá transbordando. E vaza em todo chão que caminho. 

E então ele entendeu porque os pés dela estavam sempre molhados, o corredor do apartamento úmido e a cozinha quase inundada. Preferia morar em bairros vazios porque os vizinhos não suportavam a água vazada para a casa deles. Uma vida ensopada de derramamentos do âmago. 

Ela disse quando ele reparava nos seus pés enrugados meu coração também está. 

Ele a olhou assustado. Olhou nos olhos fortes que se misturavam com a expressão triste que ela não se preocupou em esconder. Ela lhe mostrou uma radiografia de seu coração. Estava murcho. Ele pensou estar falando com uma alguém enterrado. Ela, então, colocou a mão de dedos finos e longos no seu peito. Nunca um coração bateu tão forte, pensaram juntos. E silenciaram. Olharam-se. Sorriram. 

Era madrugada e cada um foi dormir com sua dor. O som de passos se esfregando em poças d’água o acompanhou até a porta. Ela repousou em seu rio. Ele continuou cavando.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Pela minha boceta sai o sangue quente vermelho do meu coração. Um grito trancado na boca aberta. O vermelho coalhado escorrendo pelas minhas pernas rasga minha pele, estoura minhas veias, perfura meus poros. E eu. E eu me devaneio, me desanuvio. Fico seca. Osso. Caroço de mim.

O que foge do meu âmago encharca minha cama, inunda o chão do quarto e sobe para o teto pintando as paredes de vermelho-marrom. De cor-de-dor.

Quem veio me resgatar se machucou com a minha angústia e chorou cacos de vidro. Quem com medo de se aproximar e só espiou de longe meus olhos tristes abertos suou espinhos de rosas. Quem contou minha história vomitou amarelo pastoso. Quem ouviu ouve agora pro resto da vida meu choro agudo. Que não morreu. Que não parou. Que não acabou. Que não morreu. Que não parou. Que não acabou. ... ...