sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Pó de maquiagem preta

Quando ela chegou do trabalho era começo de noite. Abriu a porta de casa e abandonou a bolsa no chão, embaixo do cabideiro que guardava dois casacos do frio que fez semana passada. A caminho do banheiro deixou sapatos, meias e o que conseguiu tirar de roupa. Se preocupou em aquecer a água da banheira lentamente, para que a sentisse morna-fria e não fria-morna. É que o tempo estava abafado. E assim se expressava porque hoje muitas pessoas sentiram as horas paradas.

Enquanto a banheira tinha todo o seu espaço vazio sendo preenchido por líquido refrescante transparente, ela, na cozinha, desprendia a rolha que não queria se separar da garrafa. Encheu uma taça e no meio do caminho, como já havia engolido largos goles do vinho, voltou para pegar o vidro. Silenciou a torneira, libertou os cabelos que estavam lutando contra a gravidade, esvaziou a taça, colocou uma perna, e depois a outra na banheira. Agachou-se quase como numa queda, mas sem permitir que seu corpo caísse, seu corpo pousou na água, deitou-se com alívio.

Ela se libertou do suor e o calor do tempo abafado evaporou de sua pele. Preencheu a taça vazia e no mesmo momento em que a uva fermentava docemente em sua boca, apesar do vinho seco, toda a película de sua carne esfriou a deixando refrescante.

Tanto conseguiu relaxar que adormeceu e a taça flutuou na água derramando o vinho que restava ali dentro. Leve como ela. Leve como ela não estava há tempos. Ali ela flutuava num sonho onde voava por cima de árvores frescas com folhas que faziam cócegas nos seus pés. Mas a água ficou transparente por pouco tempo. O vinho caiu como uma mancha de dor concentrada. Assim que pousou na água, a fruta roxa escolhida embebida em álcool fez um caminho escuro e pesado até finalmente ser pequena em meio à banheira. Ao se despertar ela entendeu que deveria dissolver sua angústia em alguma coisa grande. Muito grande teria que ser. Porque tem muito sangue no corpo e não basta uma banheira. Muito grande teria que ser. Porque tem muito sofrimento no ser dela e não basta uma vida inteira.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Bisturi

Ela enterrou as unhas grandes e afiadas no seu peito quando o desespero da dor já era insuportável. Batendo, arranhando, riscando até que a pele rasgasse. Rasgou e doeu e ela chorava. Ela aberta com carne sua embaixo das unhas. Mas ela já chorava antes. Continuou a enfiar as mãos em si mesma, continuava a se perfurar enquanto gritava sem som. Ao atravessar a camada de gordura que não aquecia seu coração há muito tempo procurou e... procurou e... Nada. Não encontrou o que queria. Ela aberta vermelha. Seu coração palpitava com força enquanto uma lágrima escorria dele. Mas onde está, ela pensou? Ela aberta com dúvida nos olhos. Onde está esse sentimento de te amar que ainda não saiu de mim? Ela aberta tentando tirar isso. Com sangue nas mãos e o coração ainda mais exposto ao mundo, ela bateu na porta dele. Ela aberta derramando sangue na rua. Morre, ela disse sem som. Morre de dentro de mim, ela disse sem som.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Corredor Correria

- Feliz ano novo pra você. 
- Pra você também. 
Sorrisos nos rostos. 
Sigo pelo corredor do 13º andar e encontro na sinceridade da minha pequena caminhada sozinha até a porta do elevador um rapaz sentado nas escadas que só uso quando chorei muito. Ele me olha não porque me olha e sim porque sou uma movimentação de blusa vermelha naquele espaço monótono e longo de portas fechadas afiadas. Ele me olha por poucos segundos e me sinto invadida. Espero o pim do elevador que veio dos dois lados enquanto mexo no meu guarda-chuva que não usarei hoje. Um me levaria para cima, outro para baixo. Penso se subo para depois como peso cainte até o chão espatifar-me. Preferi a segurança do constrangimento-elevador lotado e pisei com os pés, não com a cara, no petit-pavet-tinha-no-meu-caminho-hoje. Aí percebi que as escadas seriam mais interessantes. 

No elevador sou obrigada a estar com pessoas na rua sou obrigada a estar com pessoas e nela eu posso desviar, nele eu olho para o chão para não verem o rachado vermelho dos meus olhos os cílios ainda molhados de líquido transparente levemente salgado. Saio respirando profundo pra tirar dos pulmões o pensamento do conteúdo da sala do 13º andar. Respiro profundo. Respiro profundo. Respiro promundo. Respiro a. Respiro aaa. Respiro aa-a-a fuuuuu a-a-a-a-AA atchim! Perfume doce da mulher com calça verde florida de roxo na minha frente. Perfume doce da mulher com calça verde florida de roxo na minha frente invade como agulha as minhas narinas a esquerda coça mais que a direita e eu espirro três vezes em seguida. Pausa. Mais três vezes em seguida. Pausa. Até paro de caminhar. Sacudo as mãos a espera de um ou três ou quatro espirros mas eles falham e. E eu continuo parada no meio da calçada pra reparar naquela mesa pequena amarela que ficaria tão legal na futura sala que terei. Não é uma sala como a sala do 13º andar, mas ainda assim é uma sala. 

Tenho sede de fruta no calor que derrete uma gota no meu pescoço. Tenho vontade de você no tesão que invade minha calcinha enquanto durmo. A promoção mais barata que antecipa o Natal ecoa nos meus ouvidos eu tento me lembrar de uma canção, mas com tantas mensagens publicitárias musicadas e elaboradas com um refrão grudento e de curta duração, a fim de serem impregnadas nas nossas sinapses com facilidade o ritmo-melodia do meu cantor quase favorito foge de mim. Assim como às vezes eu fujo da sala do 13º andar mesmo estando lá dentro. É difícil correr dos meus pensamentos. Mas até o corredor correria se escutasse tudo o que digo na sala que não é a futura sala da minha casa.

domingo, 25 de novembro de 2012

Um conto sobre o espelho

Ela se arrumava em frente ao espelho retangular pousado verticalmente na parede. Ao colocar os cabelos para trás com o arquinho vermelho, reparou solta a moldura do vidro que reflete. Curiosa, se esqueceu de abotoar o sapato e com um gesto receoso arriscou em adivinhar. O espelho como porta e a moldura como maçaneta. Ergueu os pés para não tropeçar na parede. Porta de espelho não vai até o chão e é mais estreita para atravessar. 

Seu nome não era Alice, mas ela também descobriu um mundo mágico. Estava por detrás, no outro lado, na etiqueta. Conheceu sua casa pelo avesso. Tudo duplicado. Neste outro panorama os espelhos eram olhos, buracos de fechadura; e não um reflexo. O esconderijo perfeito. Engenharia de brinquedo provavelmente deixada por seu avô. Os jogos de adivinhação e os caça-tesouros com ele tinham um sentido agora mais presente. Ela tateou o avesso da casa e ao acender as lâmpadas amarelas quis mesmo morar ali: na casa que existia dentro da casa. 

Viu seu quarto olhando-o de fora (ou de dentro?). Percorreu seu novo refúgio com calma. Percebeu que em alguns pontos das paredes havia lençóis pendurados. Ao retirá-los entendeu que o lado oposto dos espelhos vigiavam escancaradamente todos os cômodos e todas as falas que se falam sozinhas e todas os segredos que se revelam entre quatro paredes. Logo compreendeu que os lençóis serviam para não ver o que não deve ser visto, para não ouvir o que não se deseja escutar. 

Ela aproveita quando todos saem para desnudar as paredes da casa de dentro da casa. Seu precioso esconderijo a ensinou a ver o vermelho da pele, a planta pela terra, o caminho pelo labirinto, a fogueira da brasa, o oitenta e o oito, a pedra e o pau, o caminho do fim, a visão dos olhos dos outros.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Coador

Marcaram o último encontro para aquela noite. Apesar da proximidade entre os dois corpos sentados na mesa pequena do café pequeno a distância era alargadora e ardia. Ardia no corpo dela cada palavra errada que ele dizia. Cada letra afiada saída da boca que ela ainda desejava deixava os seus pequenos ombros brancos cada vez mais vermelhos. Ele não sabia sobre ele e nem sabia o que dizer. Mas dizia. Por que não se cala?, ela pensava. Por que continua tentando consolar o fim do nosso relacionamento depois de me ver e atravessar a rua? Ele não sabe quem ele é e isso fez bolhas nos ombros dela que já estavam rachados. Ele não sabe o que fazer com ele mesmo e isso abriu uma ferida de queimadura no peito dela quando ele confessou que, sim, a amava. Mas ele se esqueceu de amar. Com os ombros secos e a língua imóvel ela demorou para conseguir "pára de falar". 

Ele parou. Engoliu as palavras que ela doía ao ouvir. Por que não se cala?, ela pensava. Por que ele não se cala? Por que continua falando com esses olhos grandes cheios de dúvidas e repletos de uma interrogação profunda que ele esconde e não sabe responder? E por que o que ele diz parece mentira e mesmo assim eu acredito? E mesmo assim ela acredita. E talvez ela acredite na incerteza do que ele afirma. 

As vírgulas que ele cuspiu estavam cravadas em seus finos dedos. As mãos dela brancas permaneciam cada vez mais frias porque ele as deixou abandonadas em cima da mesa durante toda a conversa. As mãos brancas machucadas de fiapos afiados das vírgulas que ele cuspiu. As vírgulas que tanto coloquei nas frases ininterruptas por ainda querer o sorriso sincero que ela sorri com os olhos e eu não sei pedir. Por sentir falta das brincadeiras exageradas na hora da despedida. Por desejar o tesão apaixonado que ela sente por mim. Por querer estar com ela e não suportar isso. 

O silêncio ensurdecedor se estendeu até que os olhos dele secassem toda água. Ele não sabe chorar. Sua lágrima foi de licor. Até que os ombros dela sangrassem. O café empalideceu. O chocolate amargou. 

Ele pergunta: 
- Seus olhos estão esverdeados hoje. 
- Eles só ficam assim quando eu choro. Ou  quando está sol.

sábado, 27 de outubro de 2012

Três da Tarde

Quando a noite chega ainda na hora do dia e ninguém mais quer trabalhar ou estudar o céu de triste azul-claro-bobo foi ficando cinza escuro e o fôlego que sobrava em quem caminhava até o banco, em quem explicava equação fatorial, o fôlego de quem não finalizava o relatório, de quem acelerava na rodovia desacelerou. O fôlego suspirou e não quis mais ofegar.

Quando a noite chega na hora do dia e ninguém mais quer trabalhar ou estudar a maioria trabalha e estuda. Mas aquela semana estava comprida e resolveu que não iria terminar. Meses sem sextas. Sem sextas-noites e sem cestas-arremessos porque o pai do filho pequeno só pulava alto aos sábados. Meses morrendo em meio às obrigações riscadas no papel. Meses amassando intermináveis massas de modelar. Meses programando códigos suspensos de eletricidades virtuais. 

Mas aquela semana estava comprida e resolveu que não queria terminar. E o céu que ficou cinza-escuro empalideceu a cidade pra combinar com os rostos murchos. Nuvens escuras começaram a dançar num ritmo fluido que densou a água acumulada. Os algodões agora nada brancos sobre as nossas mornas-vidas intensificaram o ritmo do compasso até que o líquido transparente saísse silencioso do montante de veludo flutuante. Os outros mais os que franziam as testas de cansaços, mais os que espirravam, mais os que verticalizavam cimentos e mais os que contavam moedas... ao sentirem o cheiro inconfundível se aproximar pararam. Até que as gotas tocassem o piso, o teto, a árvore, a casa e a cara não houve barulho ou ruído. O trânsito se acalmou, o carro apagou, a palestra cessou. 

Diagonal e fino o choro da cidade beijou todos os lábios que se abriram para sorrir ou chorar. Aliviou o fluxo de sangue que corria nas veias para aí sim pipocar com força tranquilizante todas as superfícies e todos os que queriam ser tocados. 

E o que se viu enquanto as grossas gotas gotejavam foi cama dormindo com homem de terno e gravata, foi a receita mais demorada sendo elaborada, foi cheiro de café, filme na sala, bolinho de chamego. Foi menina que até parou de escrever para

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Con ganas de color

Sonhei com um desconhecido que me pegava pelos braços e me rodava no meio da rua. Minhas pernas balançavam em círculos no ar. 

Eu precisava ir ao mercado, mas a geladeira não funcionava por falta de luz. Todos tomavam água em temperatura ambiente. Ninguém se queixava do tom amarelado que os corredores tinham. E depois de algumas horas ninguém mais percorria as prateleiras atrás de alguma coisa de comprar. As pessoas se reuniam na entrada, nos espaços ainda vazios sem embalagens coloridas para conversar simplesmente. A chuva havia morrido fazia pouco. Então as ruas estavam cheias de lacunas porque sem muita luz nos lugares todos pararam por onde passavam. E pode parecer estranho, mas mesmo com a falta de luz não havia breu. 

Eu entrei no supermercado. Eu vi os caixas, os clientes e os gerentes fazendo nada e alguns sorrindo por isso. Com sacolas vazias eu saí dali e trombei com alguém no meio da rua. Nos olhamos, rimos e ele me levantou. Sonhei com um desconhecido que me pegava pelos braços e me rodava no meio da rua. Minhas pernas balançavam em círculos no ar. Aí eu fui num café tomar um leite, passei num pequeno conjunto de varandas procurando cevada. Quando voltava para algum lugar que eu não me preocupava qual era e se iria chegar eu o encontrei outra vez. Esse desconhecido que eu sonhei e que me pegava pelos braços e me rodava no meio da rua. Minhas pernas balançavam em círculos no ar. 

Percebi que o sonho era meu. Eu dava voltas na quadra me deparava com o desconhecido de camiseta azul clara. Eu inventava um caminho e encontrava quem eu não sei quem é. Ele percebeu que o sonho era meu. Brincou o meu jogo. Escondia-se em lugares onde eu pudesse acha-lo. Escondido onde podia ser encontrado. O meu sonho se tornou essa descoberta de esconde-esconde e pega-pega. E sempre que nos víamos ele sorria. Eu sorria. Eu sorria e logo amolecia meus músculos para que ele me rodasse no ar e minhas pernas balançassem em círculos. Eu sonhei com um desconhecido que me pegava pelos braços e me rodava no meio da rua. Meu corpo gargalhava. Minhas pernas balançavam em círculos no ar. Acordei quando a chuva que molhava as plantas que eu não tenho parou. E agora? Será que se eu aparecer de surpresa na rua ele vai querer me rodar no ar e me fazer flutuar outra vez? 

Ele, quem eu sei exatamente quem é.

domingo, 21 de outubro de 2012

Matias

Cansado, mas espiritualmente agitado, ocupou-se durante a demorada refeição com assuntos abstratos, transcendentes mesmo. Pensou que o envolvimento com outras pessoas o fazia envolver-se cada vez mais com o seu íntimo, com o seu ser e com o seu não ser. Falou sobre a cor do vinho e imaginou que se seu sangue fosse de uva talvez sua corrente sanguínea se tornasse mais fina, e então seria mais feliz viver. Porque sangue menos grosso percorre com mais fluidez pelas veias e deixa a vida mais leve. Enquanto colocava cinco ervilhas na boca, uma por uma, entendeu que o peso dos seus olhos, o inchaço de seus pés e o formigamento de suas mãos eram ocasionados pelo sangue que nasceu nele e não era de fruta. 

Tomou mais um taça de vinho, com calma bastante, mesmo sabendo que dentro do seu corpo a velocidade continuaria pastosa. E se lembrou novamente que o envolvimento com outras pessoas o fazia envolver-se cada vez mais com o seu íntimo, com o seu ser e com o seu não ser. Olhou para o pedaço de carne que restava sozinho no prato. E se sentiu como ele. Há muito tempo não se relacionava com alguém quando além de cafunés, olhares sorridentes e orgasmos suados a interação entre dois perguntava a sua essência. Olhou para o pedaço de carne que restava sozinho no prato. E se sentiu como ele. Ele. Essa espécie de ser resta-um no cotidiano de apenas uma xícara na mesa e muito espaço na cama. Na casa. 

Preencheu mais uma taça e embebedou o pedaço de carne com o líquido roxo. Engoliu em pouquíssimas garfadas aquela fração de corpo morto encharcado com aroma etílico de uva. Em seu estômago, mais peso. O garçom do restaurante conceituado tinha vergonha de parecer inconveniente, mas o homem de sangue vermelho denso percebeu que era observado por olhos espantados. Satisfeito, pagou a conta com formalidade. Saiu do restaurante para as ruas escuras de paralelepípedos, assim como o dia que já não estava claro. 

Os olhos escorrendo, as mãos de chumbo, as veias de geleia e a vida solitária. Mesmo com as muitas pessoas que encontrou e conversou no caminho. Dormir para não pensar, fechar o livro para esquecer a história triste, fugir do espelho para fingir. As veias de geleia e a vida solitária. Como o pedaço de carne que ainda restava no prato.

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A frase "Cansado, mas espiritualmente agitado, ocupou-se durante a demorada refeição com assuntos abstratos, transcendentes mesmo." foi retirada do livro "Morte em Veneza" de Thomas Mann

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

De cafuné

É difícil esquecer que tem concreto no concreto. No centro na XV na janela do meu quarto da cozinha na cabeça da vizinha. Sete e meia da noite. Algumas lojas da rua mais famosa resistem abertas. Não é fim nem começo de mês, mas elas insistem já quando quase noite com as portas erguidas e promoções com parcelas baratas pra você ser mais brega ou mais estiloso. Eu sou brega de sentimentos. Porque hoje amar é arriscado e eu ainda insisto. Minhas portas estão fechadas às sete e meia da noite e vão demorar pra abrirem outra vez. Se abrirem...

É difícil esquecer que tem concreto no concreto. No centro na XV na calçada em volta da planta no meio do chão na vitrine na pipoca no céu. Céu que eu resolvo caminhar mais lentamente pra ver. Quase tropeço num copo de plástico cheio de algum líquido amarelo fluorescente produzido pela rede de comida rápida pra você comer rápido e voltar rápido pro trabalho e olhar rapidamente para o céu que eu resolvi ver demorado. Eu caminhando pela rua mais famosa já nem tão movimentada às sete e meia noite fui mais devagar. Arrisquei tirar os olhos da frente da cara e colocar em cima da cabeça.

É difícil esquecer que tem concreto no concreto. Mas eu quase esqueci quando no meio – na medianera – das pontas dos prédios que ficam às margens das pretas e brancas pedras eu vi o céu. Composto de azul escuro iluminado com nuvens brancas de marrom redondas e macias. É difícil esquecer que tem concreto no concreto. Mas eu até esqueci. E só olhei sorrindo de boca fechada. Passei da esquina que deveria ter virado e só então percebi que enquanto olhei sorrindo de boca fechada com os olhos em cima da cabeça, me olharam com bocas redondas e olhos nas têmporas.

Pouco mais de sete e meia da noite. Algumas lojas da rua mais famosa ainda estão abertas. Minhas portas estão fechadas às sete e meia da noite e um pouco depois também. Vão demorar pra abrirem outra vez. Se abrirem.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Pleonasmo

Meu antivírus tem a real segurança pra me oferecer, a melhor e mais confiável. Alguma página engraçada do Facebook me faz ter segundos de risada descontraída, quase um minuto mesmo às vezes. Eu me divirto cegamente durante mínimos momentos com piadas tão bobas e boas. Algum tumblr legal que eu sigo e continuo seguindo. Twitto uma novidade inteligente sobre a vida da minha banda preferida. O último vídeo que eu subi pro Youtube é do meu gato, meu companheiro. Uma cerveja boa de beber na foto do Instagram e bem ao lado da mesa que está a cerveja: o meu computador. Desligo a máquina e vou dormir. Pleonasmo. Eu já dormi o dia todo.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Crisântemos

A minha boca tá seca e quebrada. Não, não é por causa do frio nevado e longo que faz nessa vidade. É porque tua saliva não me lambe mais. Meus seios estão murchos. Não, não é porque eu tô velha. E muito menos porque eu alimentei muitos filhos. Eu nunca tive alguém sangrando de mim além de mim mesma. É que tuas mãos estão ausentes e indizentes. Meus olhos quase não piscam porque dói fechá-los abri-los e ver que você ainda não está outra vez. E nem nunca mais. Nunca menos. Nunca menos difícil que agora sendo. A minha parte molhada não é minha coxa lambuzada ela é de lágrima salgada. Arde quando sai da boceta. Não, eu não quero rascunhos. E nem me importo se sair torto ou borrado. Eu quereria se pudesse e quero mesmo não poderia. Mas é que a terra vira lama quando molha ou umedece e fede embaixo da grama.

sábado, 8 de setembro de 2012

Feriado

Sapatilha roxa no canto da praça no meio das avenidas. Sapatilha roxa no canto da praça no meio das avenidas com furinhos iguais. Um maior bem na onda que o pé faz. Onda que o pé faz veia verde que sai do pé unha ruidosa de asfalto que o dedinho do pé tem, rugas retilíneas que o dobrado pé deixa escapar. O creme branco fica preso nas rugas retilíneas e lembra que as vezes esquecemos de terminar o começado. 

Sapatilha roxa no canto da praça no meio das avenidas com furinhos iguais esquecida obrigatoriamente. Saiu de casa brigada com o tênis esportivo preto. Mas os quatro pés se confundiram nos lençóis brancos de rosas rosas algumas horas antes. Se entrecruzaram e se perderam em meio a tanta pele pelada e misturada. A cor vermelha da boca da sapatilha roxa está na cara nos ombros na nuca no pescoço do tênis esportivo preto. 

Começaram em pé, na porta do quarto. Não não. Começaram naquele outro outono dia no fim da festa ela sozinha sem jeito ele sozinho carente. Ela carente também. Mas o batom vermelho fingia que não. Palavras trocadas, memórias trocadas, confidências confessadas. Palavras trocadas, memórias trocadas, excreções trocadas, suores trocados, gozos compartilhados rumores de prazer pelas paredes dos cantos da casa da mesma praça do corredor do elevador do interlocutor. Interlocutoriando pelo interfone. Inteiros quase internos pelo hall de entrada. E querendo entrar entraram então. Casa. Porta. Cozinha. Sala. Corredor. Quarto. Quarto. Quarto. Começaram em pé, na porta do quarto. Sapatilha roxa querendo dominar, mas o tênis esportivo preto é mais forte. E segura os braços da sapatilha roxa que se derrete e se deixa dominada. Língua na língua tua. Língua no lábio teu, no rosto teu, na orelha tua, cara tua, nuca tua, pescoço teu. Tão meu. Tão... língua nas costas, ela de costas, língua nas exuberâncias redondas abaixo das costas molhadas; clitóris molhados. lambendo a língua que lambe também. Mãos nos seios atentos. Mãos arredondando nos seios arredondados. Mãos espertas nas firmes gotas dele decididas. Mordidas. Dela pelas costelas. Mordidas dela pelas costelas dele, braços dele; orelhas; nuca; peito; pescoço, dedos dele. Na boca. Dela. Na intimidade. Dela. Ela. Mela. Ele. Rela. Línguas toques truques dedos olhos furtos mãos marés pernas coxas, pés confundidos em meio à confidências confessadas nos lençóis brancos de rosas rosas. 

Confidências confessadas. Compartilhadas. Confidenciais contrariadas. Contradizendo. Contracompreendendo. Por confidências exageradas. Língua na língua rua. Corredor. Sala. Cozinha. Porta. Rua. Mãos nos braços que desviam. Pés desencontrados. Um par a chegar no outro que foge, que se fode. Dedos no gatilho que aperta. Nem costas, nem orelhas, nem nuca, nem pescoço. Sem afago ou remorso bem na onda que o pé faz. Nem creme de morango deixaria essa bala doce. Bala cinza que ficou sangue. Quente e ardente ardendo o buraco da pele pelo qual passa. Nervos moles a tropeçar a sapatilha roxa no canto da praça no meio das avenidas com furinhos iguais um bem maior na onda do pé esquecida obrigatoriamente. Quase combinava com o resto das flores que queriam adentrar o verão.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Fino Cilíndrico

- Essa é a única fumaça com a qual eu me adaptei.
- Oi? 
- A fumaça. Do cigarro. É a única com a qual eu me adaptei. 
Ele já tinha tentado várias. 
- Eu já tentei várias. 
Os dois estudando, as paredes marrons da sala pequena ficaram esbranquiçadas. Ele já um pouco cansado reparou nos desenhos que o cigarro fazia no ar. Ela levantou a cabeça do caderno pra ouvir o que ele dizia. Concentrada estava, mas nem tanto. Talvez porque ler e segurar o espesso fio com cor de céu triste entre dois dedos enquanto o leva à boca desconcentre a leitura. Talvez porque os cálculos estavam entediantes. Ela o olhava afirmativamente com a cabeça sem compreender muito bem, mas querendo participar do assunto enquanto a fumaça entrava nos pulmões. 
- E as outras? 
- As outras fumaças não me apetecem. 
- Elas não soam flutuantes? 
- Não é só isso. A do charuto é muito densa, a da maconha fede demais, a do cachimbo é muito escura e a do incenso muito cheirosa. 
Ele explicou que não, nunca tinha fumado um incenso. Ela então falou que quando criança agarrava às escondidas as bitucas que seu avô jogava no jardim. As guardava num pequeno pote redondo de lata onde antes tinham balas coloridas de morder. Era o seu segredo, ela dizia. 
- Era o meu segredo. Me enfiava atrás da casa, no corredor esquecido que ficava ao lado de fora pra cheirar os pequenos cigarros quase mortos. Comigo eles nunca morriam. 
E falaram tanto até que a sala ficasse ainda mais pequena, até que a cor da parede tomasse cor fumaça e os livros chatos de números em cima de frações ao lado de vírgulas se perdessem no teto de letras que voam.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

-

Busquei a boca para falar de
memórias mascadas manhãs
Mágoas derretidas putrefando
em perdidas corridas pendidas

Quis a língua para vomitar
teu gosto inteiro, eterno
Minha goela não aguenta
lembranças a cara me lambem

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Pangeia

Depois do primeiro beijo do segundo dia que a gente se viu eu até sei que você já trabalhou naquele prédio alto que fica naquela rua. Eu quase não consegui entender o que estava escrito na sua camiseta, mas quem estava mais bêbado era você. Atrapalhado com a lata de coca-cola no terraço desse prédio que fica nessa rua aqui. Descemos do carro e você já até sabe o número do meu apartamento que ele fica no primeiro andar, mas eu subo as escadas correndo e te levo junto digo que pra um lugar que gosto ao invés de ver a paisagem eu vejo seus olhos bem perto dos meus. 

Sua boca colada na minha. 

Por um tempo parecemos dois pilares de concreto que foram construídos com um mínimo de espaço entre eles. O sorriso sem graça e de vontade aproxima esses dois pilares que bem mais parecem argila molhada agora. Meu corpo tava pedindo o seu e só de sentir sua mão boba que sem querer se apoia na minha coxa meu calor espanta a brisa pouco fria que passou ali. Agora lembro que seu cheiro me arrepiou depois que você se livrou da coca-cola e andou reto na minha direção com cara de vergonha nada envergonhada. Meu olhar ficou grande esperando o que viria e acho que sorri meigo. Fechei os olhos e senti sua camiseta balançar com o pouco vento antes de encostar no meu peito. Me derreti e só não escorreguei pela parede porque sabia que nossas línguas queriam conversar outra vez. Conversa boa foi aquela. E de repente nossos olhos estavam se olhando deitados na minha cama. E tá tudo tão certo. Eu lembro que escutei isso. E tá tudo tão certo. Eu me lembro que foi a última coisa que ouvi antes de dormir sorrindo segurando sua mão. Mas aí você me acorda e foi dormir na sua cama. E apesar de achar estranho eu nem me importei e gostei assim. Vai ver porque quando eu te olhei, eu te olhei, e porque quando você me olhou, você me olhou. 



Na manhã seguinte a vizinha de cima passou metade do seu dia se perguntando por que raios estaria uma lata de refrigerante perdida no chão do terraço grande.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Confissão

Eu me fiz na falha, no erro
Eu me conheci na covardia
no medo de aceitar, enfrentar
Eu quis não mais querer sofrer
Eu quis não mais querer chorar
Eu escolhi a derrota
Eu não encarei a verdade
Preferi me esconder
Decidi fugir
Me refugiei no abismo
Corri
e cai do meu próprio precipício
Fingi tentar
Fingi gostar
Fingi o espanto
a vontade
a novidade
Menti o gozo
Enganei um amor
Jurei em falso
Fiz de propósito
Desejei o não eu
Me esquivei de mim
Feri a mim mesma
Não me arrependi

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Maré de overdoses

Os comprimidos abrindo a parede do estômago
A cabeça de ponta-cabeça
A ausência
Aquilo que eu achei que era ontem, mas era hoje

Os morangos na mesa da manhã
Os braços no abraço
A permanência
Aquilo que eu achei que era hoje, mas era ontem

terça-feira, 26 de junho de 2012

Camomila e Café

Segunda-feira. Pouco passa da meia-noite, mas a cidade já está quieta. Silenciosa. Alguns carros ainda não retornaram para as suas garagens e, fora isso, só os passos dela fazem algum ruído, de vez em quando. Ela volta sozinha como toda noite acontece. Como gosta daquela rua, da quietude. Ultimamente tem sido difícil cumprimentar colegas de lugares comuns e responder, tudo bem sim e você. Podia o mundo deixá-la por um instante, é o que ela pensa. Uma caminhada. Quinze minutos. Solidão precisa essa. Pra adiar o encontro com alguém em casa, pra aumentar a chance de todos terem já se recolhido ela diminui os passos. Como companhia uma pedra que está chutando há dois quarterões. Uma brisa fria inesperada a fez fechar o casaco e esquecer o brinquedo. Cheiro de chuva. Aquele que chega devagar, mas de repente. O céu ta preto de nuvem que quer chorar. Ela também quer. Ela também quer. Você já caminhou de olhos fechados? Ela já. Ela está. É que começou uma garoa calma e ela gosta de sentir pequenas bolinhas úmidas nascerem do rosto. É certo que não nascem, caem. Mas de olhos fechados é como se tivesse surgido da pele. Se as lágrimas não transbordam dos olhos, ela se consola ao imaginar que a pele chora. Pára. Fica imóvel no meio da rua vazia de gente. Tem árvores desbotadas que começam a ficar nuas. Tem o vento cortando a cara pena que não corta o sentimento. Tem alguma coisa sofrendo. O cheiro doce da árvore daquela casa de esquina vem como que para abraçá-la. Afago invisível que a faz sorrir dolorosamente. A chuva ta mais forte e tão bonita. Parece besteira, motivo pra chateação, mas se o choro ta seco a água que a enxarca disfarça o que ta estampado na cara e não quer sair do coração.

domingo, 24 de junho de 2012

Escultura de pele

Me assustei quando me vi de fora.
Me assustei quando me vi de fora e me vi.
Me assustei quando me vi de fora e me vi parada sozinha.
Parada sozinha costas na parede pernas cruzadas pra fora da cama.
Fora de mim boca fechada. Meu corpo falando pra mim quando eu me assustei quando me vi de fora que eu tô pensando loucura. Isso não se pensa.
Isso é doença da cabeça menina não pensa nisso.
Eu pensando no que eu pensando.
Eu pensando se o que eu pensando é doença da cabeça ou doença de ser gente.

Me assustei quando me vi fora.

Me assustei quando me vi na expressão que eu tenho fora.


Fora.
Fora.
Fora.

Me assustei quando vi de fora como sou dentro.

Tudo bem.

Tudo bem. Alguém derramou o leite, mas tudo bem. Meu time perdeu, meu coração foi traído, um amigo morreu, roubaram minha vergonha. Cuspiram no meu ego, mas tudo bem. Acabou, já não existe. Uma hora passa, tem que passar. Sangrou minha alma, doeu meu sentimento. Machucou. Tudo bem; que seja infinito enquanto dure ou é infinito agora. Mas o agora também é depois. E tá me doendo o agora de ontem, de um mês atrás. O agora do passado no meu agora de agora. Chove onde ta molhado e faz sol onde ta seco. Ouço um gemido e quem chora é meu âmago, mas ta tudo bem, ta tudo bem.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Bonito

Eu me lembro do pouco que vivi com você
e do muito que temos pra viver
Juntos
No mesmo almoço
No mesmo bar
Na mesma cama
Embaixo do mesmo chuveiro
Protagonistas apaixonados do mesmo filme

Eu me lembro do pouco que vivi com você
e do muito que temos pra viver
Juntos
O show do mês que vem
O sol do verão próximo
Meu quarto novo
Seu quarto velho
Atores da mesma peça

Eu me lembro do pouco que vivi com você
e do muito que temos pra viver
Juntos
Violão no parque
Vinho na chuva
Sorriso no rosto
Ressaca no domingo cedo
Confidências no domingo tarde
Beijo na boca

Abraço
nu
corpo
inteiro

Eu me lembro do muito que vivi com você
Juntos
No mesmo almoço
No mesmo bar
Na mesma cama
Embaixo do mesmo chuveiro
Compositores da mesma banda

Eu me lembro do muito que vivendo com você

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Sorvete

Olhou para o banco da praça. Olho em volta. Todos continuavam suas tarefas cotidianas. Caminhou tímida até o banco como se alguém a vigiasse e sentou-se. Desconfortavelmente, é verdade, mas sentou-se. Sem descansar a pasta grudada ao peito a mulher experimentou parar um pouco e observar. Depois de uns minutos reparou que preferia investigar as crianças que eram arrastadas pelas mãos entrelaçadas com adultos apressados. Reparou também que a pasta estava largada em seu colo. A coluna dela já não estava tão ereta e as pernas não estavam rigidamente fechadas. Mas isso fui eu quem reparou, não ela. Os ombros relaxados denunciavam que estava mais íntima do encosto do banco. Mais íntima da praça também. E de quem via. 

E de quem a via. E de quem a vida. E quem a vida deixou relaxar um pouco também. 

Levantou-se sem saber ao certo porque estava fazendo isso, mas tudo bem, ela tinha que aprender a pensar menos. Rindo de si mesma pediu uma casquinha com uma bola de morango e outra de chocolate. E neste dia também resolveu caminhar até sua casa. Ela ria do que estava fazendo enquanto recordava sua infância numa rua sem saída de terra batida. Relembrando-se dos joelhos ralados, das unhas imundas, dos pés descalços. Dos muros e árvores escaladas, das corridas, das caídas, das risadas. 

Mas os sorrisos de rugas nos cantos dos olhos que as memórias do parágrafo anterior causaram se cessaram no exato momento em que o sorvete caiu no chão. Caiu o sorvete, caiu a pasta, caiu a felicidade. Pensando bem, a felicidade tropeçou. E no tropeço sim se deixou cair. Ela - não a felicidade, mas a mulher - ficou parada observando agora não a sua vida de menina que passava na tela da memória ou a vida de quem passava, mas o sorvete rosa que ia se misturando com o sorvete marrom. Um pouco estava derretendo e o outro pouco estava derretido. Então ela pensou que o derretendo e o derretido eram, em algum momento invisível, uma coisa só. Com os braços soltos ao lado do corpo e a cabeça baixa ela viu as fissuras da calçada serem pintadas de um doce não tão colorido assim. Eu vi sua estagnação, sua decepção. Eu a vi se abaixando. Ela se abaixou. Eu a vi se sentando. Ela se sentou. Eu a vi chorando. Mas ela não chorou. 

Ela contemplava o gosto nostálgico da infância se desmanchar e constatou que a casquinha do sorvete continuava ali, inteira. Ela pensou que queria ser a casquinha, não o sorvete. E não era necessário ser uma casca tão firme assim. Bastasse que fosse uma casquinha sua. Eu doí quando ela pensou isso porque começou a chover e na chuva a casquinha começou a amolecer. Elas; não a casquinha e a chuva; mas a mulher e a felicidade, amoleceram também. E derretidas foram embora. A mulher pegou a pasta com um gesto obrigatório de quem precisa daquilo para o dia seguinte. Caminhou devagar e molhada até sua casa como quem vai enfrentar uma noite acessa. Ela deitou no travesseiro com uma cabeça que não aprendeu a pensar menos. 

E eu me molhei na chuva até que a casquinha morresse.

terça-feira, 12 de junho de 2012

A ferramenta da engrenagem não conseguia mais funcionar.


Despertador. Despertador desperta. Despertador desperta. Despertador dorme. 
Adormecida desperta. 


Abre os olhos. As pupilas dilatadas miram o quarto desconjurado. Fecha os olhos. A infiltração da parede escorre água lenta. Molha o chão. Ela quase não consegue, mas finalmente se move. Senta com as mãos apoiadas na cama e os pés no chão. Molha os pés. Na água que escorre devagar da infiltração. Impossível secar. É contínua. Continua.

Já faz um tempo. 

O chão não seca e a parede está cada vez mais arenosa por dentro. Os grãos duros de areia se esfregam um noutro e fazem um ruído grosso. Ela arrasta a parede, mas ela não sai do lugar. Ela arrasta a parede, mas ela não sai do quarto. Seus pés enrugados deslizam no piso fraco. Embaixo da fechadura da porta tá profundo e escuro.

Morrendo. Doendo por morrer. 


Ela estava muito fria. A porta do armário isolado estava emperrada. A água subia mais. E mais. Ela gritava na tentativa de aumentar sua força e abrir a porta emperrada do armário isolado. Ela caiu e seu corpo molho nas lágrimas da parede da infiltração. Quando conseguiu viu dentro.

Vermelho. Só havia o que vestir vermelho. 

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Baionetas no estômago

Justo no do domingo de manhã. Eu com cara de quem acabei de acordar, mas quem não dormi a noite inteira. A cama grande demais, apesar do colchão de solteiro. Os pés demorando mais pra esquentar e o lençol frio onde não tinha eu. Onde não tinha você. Busco qualquer música bem específica pra escutar e encontro, mesmo sem querer encontrar, um vinil que você esqueceu. Ou que não veio buscar. A vitrola respira perto de mim, mas não faz cosquinha atrás da orelha. O vinho também solitário me esquenta, mas não faz carinho na barriga. As lágrimas encontram minha boca, mas não me beijam. Eu posso andar pelo apartamento enquanto dure a madrugada que nenhum abraço-surpresa que me assusta pelas costas vai dizer que eu tô bonita nessa calça de moletom cinza sem calcinha. Meu corpo sofreu a noite toda de abstinência do teu. Eu tremi a noite toda de abstinência de você. E justo no do domingo de manhã. Eu com cara de quem acabei de acordar, mas quem não dormi a noite inteira. A primeira roupa que vi na minha frente e o cabelo ainda bagunçado. Fui comprar uns sonhos pra acompanhar o suco de laranja que iria fazer. Uma flor pra colocar na mesa.

Bem no domingo de manhã. Eu com os olhos estalados como se eles tivessem descansado a noite inteira. A cama extremamente desconfortável sem o peso de metade de você em cima de mim. O silêncio me incomoda. O silêncio da sua voz tagarela me incomoda. Enquanto tomo banho percebo a prateleira organizada demais. A neblina branca mostra um coração sorridente desenhado no box. Quando visto a camiseta percebo que estou molhado. Mesmo estando seco. O vento assovia, mas é afinado demais. O cobertor é quente, mas não sabe me abraçar. A capa do livro que você esqueceu, ou que não veio buscar, me mira, mas seus olhos não brilham. Eu posso ficar na poltrona da sala enquanto dure a madrugada que nenhum gemido vai me sussurrar no ouvido. Nenhuma mão delicada com cheiro de pêssego vai me delinear o rosto. Nenhum sorriso vai me seduzir. Meu corpo sofreu a noite toda de abstinência do teu. Eu tremi a noite toda de abstinência de você. Bem no domingo de manhã. Eu com os olhos estalados como se eles tivessem descansado a noite inteira. A aparente roupa de quem não acordou no domingo pela manhã. Fui comprar café pronto. Dois pra me acompanhar nas torradas matinais. 

E justo no do domingo de manhã. Eu com cara de quem acabei de acordar, mas quem não dormi a noite inteira. A primeira roupa que vi na minha frente e o cabelo ainda bagunçado. Fui comprar uns sonhos pra acompanhar o suco de laranja que iria fazer. Uma flor pra colocar na mesa. Na sua mesa. Mas te encontrei no meio do caminho com dois copos de café pronto e a aparente roupa da última madrugada. 

Bem no domingo de manhã. Eu com os olhos estalados como se eles tivessem descansado a noite inteira. A aparente roupa de quem não acordou no domingo pela manhã. Fui comprar café pronto. Dois pra me acompanhar nas torradas matinais. Que eu ia fazer na sua cozinha. Mas te encontrei no meio do caminho com uma flor na mão.

sábado, 2 de junho de 2012

Apressurada sem sopro inspirado

Achei delicado eu sozinha brincando com o fuxico de um marcador de livros parada no ponto esperando o ônibus que não chega olhando pra baixo com um livro de nome ‘Las mujeres más sólas del mundo’. Livro que eu li tão pouco que é como quase não comecei. É que eu gosto tanto daquela capa que fico olhando pra ela e a imagino em movimento. Daria uma cena bem bonita. A mulher de pernas brancas e vestido preto que não vemos o rosto e a vemos de costas correndo numa rua onde só tem ela. Ela foge? Ela busca? Será que ela tá com pressa como eu que tenho 45 minutos pra chegar o ônibus e chegar ao cinema ou será que ela tá assustada? Eu tô fugindo das pessoas porque parece que é hora de não esperar ninguém e fazer tudo sozinha como quase sempre foi. Alguém me acompanha? Não? Tudo bem vou assim mesmo. Só que hoje eu nem pergunto mais. Saio. Ou fico e choro. Ou vou e choro. E nem sempre quando a gente chora tem lágrima. É como se os órgãos chorassem por dentro, só que como – é óbvio – órgãos não choram acontece que eles ficam trocando de lugares entre eles. O estômago vai pra garganta e o rim no pulmão. O pâncreas segue tremendo pra combinar com seu nome, encontra o coitado do apêndice perdido no meio do caminho sem saber o que fazer até que chega à casa da bexiga que sempre tem alguma coisa pra gente tomar. Essa sim chora. E quando eu espirro três vezes atchim atchim atchim aquele menino que tinha certeza que eu não reparei que ele me olha há uns dez minutos me diz saúde e eu obrigada. Quando a senhora de maquiagem eterna e saia de veludo roxa aponta seu dedo maior de unhas vermelhas pra chamar o motorista e pedir pro motorista parar um pouquinho depois do ponto ela desce um pouquinho depois e me olha rindo pra minha cara porque eu jurava que ela não tinha reparado que eu a reparava há uns dez minutos. Compro entradas pra dois filmes porque acho que vou ver todos e acaba que durmo no primeiro. Quando acordo quero ir embora só que pra não atrapalhar quem parece interessado naquela historinha sem graça e clichê de um dramaturgo fodão e velho que trepa com suas atrizes eu espero uns vinte minutos e durmo de novo acordo e o cinema já está vazio. Só quando minha chave caiu é que reparei que ela não tem segredo e aí qualquer um pode entrar na minha casa e ninguém entra. Depois de passar pela cozinha e antes mesmo de chegar ao quarto o sofá da sala me sugou. Rolou uma correria antes seguida de uma luta de fuga que eu não pude vencer. O bom de bater nele é que não dói minha mão. Foi mais ou menos assim o sofá começou a remexer enquanto as almofadas de sentar se tornaram pés e as almofadas de encostar eu não sei o que aconteceu com elas. O sofá era mais alto que eu, o que nem é difícil, e tinha voz grossa e assustadora que me fazia gritar mais ardido e agudo que minha voz cotidiana. Nós corríamos pela casa eu na frente e ele me perseguindo até que escorreguei num tomate e só não caí porque ele me segurou e nesse momento rolou um momento de tranquilidade até que eu tentasse correr uma vez mais. Coitada de mim que fiquei presa no encontro de duas paredes. Aí não teve jeito o sofá me engoliu e voltou ao seu lugar pra que ninguém perceba minha falta. Aqui dentro tá escuro apertado eu tô sozinha. A diferença daí de fora é que fica confortável aqui e o sofá me abraça apesar da sua cara de mal. Não sei quando volto.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Polainas

Já fazia tempo que o inverno prometia chegar, mas ninguém mesmo. Acreditava Camile que dia ou outro ia. Acontecer de ficar frio?, perguntava com deboche a maioria que. Desconfiava Camile da incerteza, ela sabia que algum dia ia ter. Inverno para apreciar. Tudo muito quente ali durante o dia. Era como noite quando o sol estava. Camile em seu quarto pensando há quanto tempo. A chuva não havia faz tempo. 

Cidade quente tem os costumes mais frescos que consegue. A vida dormia durante o dia para sair na rua só quando era noite. Sair de passeio, sair a trabalho, sair a estudo. Enquanto o resto do mundo se repousava em seus quartos escuros roubando a coberta de quem dorme junto, todos ali estavam com os olhos estalados e as mentes funcionando. Enquanto muitos que queriam aliviar a bexiga tropeçavam no escuro do sapato que está no meio do corredor, a cidade de Camile acendia luzes artificiais. E apesar do sol insistentemente tórrido a rachar os frutos caídos no chão e a esturricar as roupas esquecidas no varal, quem prefere ler e produzir pela madrugada se muda para Polainas. É para poder existir de noite sem ser estranho. E mesmo com o sol abrasador rompendo pulseiras artesanais antes do tempo, a maioria das pessoas de Polainas não tinha cor. Antes, quando a pele suportava caminhar durante o dia pelas ruas, os moradores dali até tinham alguma expressão de melanina para alegrar o corpo. Mas hoje todos preferem ir pela sombra da lua. E a culinária preferiu não colocar pimenta na comida dali. 

E por ser quente assim muita coisa secou. Não só lagos, rios e piscinas de plásticos. Não só as poças dos buracos das calçadas. Não apenas caixas d’água e chafarizes. Mas também o orvalho secou. As gotículas de água que sempre sobram dentro das mangueiras, as gotículas de fora da garrafa que tem bebida gelada. A coriza do nariz, o suor do meio-dia; as lágrimas. As lágrimas também. Porque em lugar seco lágrima é água e não pode ser desperdiçada. Sem nada líquido para sair da alma por meio dos olhos, o choro era de lã. Sim, as pessoas de Polainas choravam linhas de tricotar. Os recém-chegados até choravam água antes de suas células quase secarem. As cores das linhas variavam de morador para morador, mas geralmente, as de felicidade tinham coloração azul-claro; as de tristeza eram cinzas; as de amor, rosas; as de paixão, vermelhas; as de raiva, roxas; as de forte emoção, magenta; e as de dor física eram sempre uma surpresa porque dependem do estado emocional anterior ao tombo, ao corte ou à pancada. A única cor igual para todos ali era a do luto: linhas grossas e pretas. Em Polainas, a dor do choro era dor duplicada. Dor de joelho ralado ou de coração cortado somada ao incômodo de chorar quente num cidade que não é fria. 

Como ninguém queria guardar lágrimas de lã era comum ver o chão da cidade, os gramados dos parques e os pisos dos ônibus coloridos com fios soltos. Claro que eles eram poucos porque quase ninguém chora em público. E claro que esse colorido era sutil porque só aos olhos de Camile é que ganhava brilho. Os choros das ruas são, geralmente, choros de cores-surpresa porque a dor do amor, da perda e da angústia ficam para o colo do amigo, para a cara de conhecimento do analista ou para o travesseiro isolado. Aliás, quase ninguém queria guardar lágrimas de lã. Quase. Camile queria. Camile guardava. Ela recolhia todos os cordões que encontrava. Nos dias em que estava cansada demais para caminhar ou nos dias em que queria ler seus livros, parava num ponto estratégico de uma praça. Ali havia um buraco quase imperceptível em que muita gente tropeçava. Algumas delas, principalmente as crianças e estas todas, choravam quando a pele rompia ou com o susto inesperado. Interessante, percebeu Camile, que ninguém fazia nada em relação àquela falha na calçada. Nem ela mesma. Se sentindo extremamente sarcástica e fria quando foi recolher os fios do último choro alheio que antecedeu esse seu pensamento ela se enfezou, guardou os óculos grandes na mochila e arranjou um galho de árvore bem chamativo para que mais nenhum otário que passa ali todos os dias caísse ou deixasse que isso se passasse com seus filhos. 

Era no baú embaixo da sua cama que ficava em cima da casa que Camile guardava os choros das pessoas. Eles não ficavam ali espalhados, mas compunham peças de inverno que teriam uma finalidade bem específica com a troca de clima. Troca de clima que chegou. De dentro dos armários para envolver os corpos: as roupas de inverno, que já estavam tristes por acharem que nunca mais seriam lembradas aproveitaram, com muito prazer, as caminhadas pelas ruas. Cumprimentavam-se sem que ninguém percebesse. O assunto às vezes era interrompido quando alguém descia um ponto antes na parada do ônibus. Ou quando outro fechava o casaco na tentativa de se aquecer ainda mais, deixando assim, a blusa que falava sufocada com as palavras que queriam sair. O céu deixou de ser azul enquanto a preguiça das pessoas deixou de aparecer depois do almoço e começou a se manifestar quando o relógio despertava. Mas a mudança mais marcante é que aos poucos todos preferiram sair durante o dia e fazer igual ao resto do mundo durante a noite. A cidade mudou de costumes. De costumes frios para costumes quentes. De água gelada para água calientada. De pouca para muita roupa. E a culinária colocou pimenta na comida dali. Aliás, quase todos. Camile continuava gostando da noite. 

Camile saia para caminhar enquanto todos dormiam. E consigo levava o conteúdo daquele baú. Quando a cidade repousava ela colocava nos cantos de Polainas as lãs choradas. Em cima de um banco, uma luva; no galho da árvore, um cachecol; no muro sujo, um gorro; no meio da rua, uma polaina colorida. Mas antes mesmo de todos se despertarem, agora quando o sol também despertava, Camile recolhia o que não era encontrado. Então só quem tinha coragem de não abandonar a noite ou quem simplesmente gostava muito dela, é que podia ter o pesar ou a felicidade das lágrimas transformadas em presentes de carinho quente enviados por algum desconhecido. 

Durante o dia as pessoas que caminhavam na. Noite quase sem ruídos se escutavam. Vozes pra falar do que não se diz durante. O dia era o momento de reparar em quem é. Cúmplice da noite que. Busca Camile o próximo jeito de dizer: respire, repare.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Meias coloridas com os calcanhares rasgados

Ela é doce e gosta de cobertura de caramelo
Toma café com açúcar
(ela nunca usa adoçante)
Sorri quando passa uma criança ou quando
vê um cara gente boa cantando raggae no metrô
Ela esconde detalhes na sua carteira
Rabisca com carinho a folha do seu caderno
E não usa pó facial
Olha pela janela, olha pra dentro da sua janela
Ela espanta a fumaça do cigarro
Sim, ela tem TPM
e é nervosinha
Ela usa batom
vermelho
batom vermelho
Gosta de ganhar um abraço
Ela gosta de dar beijinhos
Prefere não discutir se está bêbada
e sempre acha que nunca mais exagera quando a ressaca a desperta
e sempre acha que...
...
mas isso ela não me contou
(isso ela não conta)
Gosta das cores dos muros
Gosta de quando não consegue parar de rir
E não usa lentes de contato
E não gosta do que não gosta
e é insegura
pequena
medrosa
reflexiva
covarde
pequena insegura, pequena, medrosa, reflexiva e covarde
que gosta do céu azul
e de ver seu avô comendo sopa
e de almoços em família
brigadeiro com amigas
dormir durante o filme depois do almoço pra
ver o filme depois
Chorona
Chorosa
Que vai te dizer pra olhar aquela flor que tá legal
e que vai te fazer esperar pra pisar numa outra
Ela gosta de balanços
E gosta de estar apaixonada
E usa uma roupa com coraçõezinhos
Mas
o que ninguém vê
é que
ela usa
meias coloridas com os calcanhares rasgados

terça-feira, 15 de maio de 2012

Cinema

Viagem de rotina para... estudos. É, foi o que eu assinalei dentre as opções daquela passagem. Parada de 15 minutos num desses grandes postos onde todos os ônibus de todas as linhas descansam rapidamente seus motoristas para um xixi e um pingado. Eu fico no ônibus. Sentada na primeira poltrona do corredor no lado do passageiro, eu apenas espero o recomeço da viagem. Aliás, eu apenas esperava porque de repente vejo algo que me transporta rapidamente pra sensação de estar vendo um filme. Pelo pára-brisa gigante do ônibus eu vi uma mulher. Calça jeans, camiseta branca e casaco fino preto que tentava a esconder do vento. Cabelo preso, mas meio solto, um pouco desarrumado. Ela fumava. De pernas cruzadas apoiada sobre elas com um dos cotovelos, ela fumava. Tinha uma expressão de dor, de tristeza e de sofrimento. Sim, essas três mescladas. Mas por estranho que possa parecer dizer isso agora, ela se mostrava calma e confiante. Suas sobrancelhas quase se juntavam, mas ainda sim ela parecia serena. E ela fumava com muita vontade. Eu a senti saciar aquele desejo desesperado de um trago. Eu vi o prazer da nicotina se misturar ao peso da realidade que a comovia. O intervalo entre cada tragada era rápido, só uma tomada de fôlego para a próxima. Aquela cena, apesar de toda a minha descrição aqui, é inefável. E eu digo cena porque era uma cena e eu pensava: “não é possível, essa mulher tá atuando pra mim!”. Eu preciso carregar uma pequena filmadora comigo. A porta que divide o motorista dos passageiros estava aberta para que a livre circulação reinasse. Ela é feita de vidro grosso da metade pra cima. Mas naquele momento não era uma porta, era uma tela. Como se soubesse que eu me saciava com aquela cena, um menino ajuda a compô-la. Ele se senta em qualquer lugar que me permite vê-lo pelo vidro. Ele está de bermuda larga e chinelo, mas não me lembro mais se de moletom ou camiseta regata. Não me esqueço da sua inquietação. Sentado na ponta do banco largo de cimento que reveste a parede inteira do corredor que dá acesso aos banheiros, ele me pareceu ansioso. Ansioso e preocupado com alguma coisa. Talvez até com um pouco de medo. Mas a ansiedade dele não repercutia pelo corpo todo. Ela estava nos olhos que se movimentavam rapidamente e na cabeça que ora procurava um lado, ora outro. Então eu estava no melhor acento assistindo à cena mais espontânea e bem feita de toda a minha vida. Eu via a mulher diretamente pela cabine do ônibus e o via por um reflexo. Aqueles dois estavam um pouco distantes entre si, mas me pareciam formar uma unidade. A unidade da angústia humana; cada um do seu jeito. Aquela composição durou pouco mais que o tempo do cigarro dela. Mas foi única e irreprodutível. Houve um término que só era um fim de presença física. Ela continuou sentada. Como se fugisse discretamente de alguém o menino se levanta. De repente ele some do vidro, fica só ela, imóvel e acompanhada só por cada fumaça que saia de sua boca. Mas ele reaparece. Passa na frente da mulher do cigarro e some de novo. Ela fica alguns segundos com a bituca na mão, ainda de pernas cruzadas, olhando fixamente para qualquer ponto. Em direção contrária à do menino ela se levanta e sai de onde posso vê-la. A minha tela fica sem meus personagens queridos e intrigantes. Só vejo o banco largo agora, às vezes alguém passa na frente dele. Pra mim o silêncio instigante. Qualquer justificativa abominaria a beleza do que vi.



segunda-feira, 14 de maio de 2012

Cena 2: O algodão-doce tucumano.

Numa tarde de sol e de ânsia fui passear no Parque Avellaneda que tem perto da casa onde moro em San Miguel de Tucumán. E lá tinha um parquinho de diversões cheio de cores pra ver e comer. Muitas crianças, muitas famílias. Um ambiente agradável e alegre. Que me deixou leve. Nesse dia eu até brinquei num balanço depois que um amigo da casa apareceu por lá, coisa que não fazia há anos. Aí estava eu olhando mais e tirando menos fotos quando vejo uma mulher fazendo aqueles algodões-doces gigantes que tem aqui. E, apesar da vontade de filmar aquela cena, eu deixei pra memória. E era assim: ela de costas pra rua e de frente pro parque. Uma menina de uns 20 ou 21 anos que embalava a espuma rosa de açúcar. E a mulher simplesmente rodava seu braço em movimentos circulares fazendo brotar no palitinho o paladar infantil pros olhos verem e avisarem a vontade que pula na boca com aspecto de saliva. E eu fiquei ali. Parada e olhando. Em pé, assistindo, com lábios sorridentes e olhos emocionados.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Mostrar ícones ocultos.

Solucionar problema. 

Detectando problemas................................ 

Aguardando resolução de problemas......................... 

Seu problema foi identificado. 

Seu problema foi identificado. 

Seu problema foi solucionado. 

Aguardando resolução de problemas.......................................... 

Aguardando resolução de problemas....................................................... 

Seu problema não pode ser solucionado. 

E a opção “tente novamente mais tarde” não tem pra mim.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Plano Improvisado

A menina de cabelo branco e olho preto pegou a mala pesada. Saiu da casa de madeira antes do sol aparecer. A rua longa, reta e cinza tinha apenas pequenas moradias nas margens do asfalto. Carros não havia naquele lugar. Apenas patinetes, mas ela ia a pé e silenciosa. Os olhos saltados da garota branquela tinham um foco preciso. No final da rua havia um terreno com mato seco que dava para os fundos de um lugar. Difícil acesso. Mato tão seco quanto o aspecto das folhas avermelhadas e escuras que caíram das árvores aparentemente mortas. Para não chegar lá pelas portas da frente era preciso atravessar o aglomerado de plantas velhas altas. Como é comum que as pessoas busquem a entrada formal e mais fácil, alcançar o mato só era possível depois de descer um enorme barranco e ninguém se preocupava com isso. O tempo estava úmido. Ah, sim. O tempo estava úmido. Então se você criou a imagem de uma rua seca pense agora que ela está com vestígios de chuva que caiu na madrugada que ainda não acabou. 

O barranco estava escorregadio e o peso da mala atrapalhava o equilíbrio. Primeiro a mala, depois a menina; mala para frente, garota por último, menina adiante, mala atrasada. Com esse revezamento o caminho era menos perigoso. O sol já queria surgir, mas as nuvens não o deixavam ver o que garota quer fazer. Quanto mais íngreme ficava o morro mais improvável era achar firmeza para pousar a mala. A menina agora estava adiante do objeto marrom que, de repente, se desprendeu do paredão e caiu por cima dela. A pancada na cabeça provocou um desmaio imediato que as fizeram rolar, a mala e a garota, direto para o pé do morro. 

O menino estava muito magro. Desgastado com o cuidado que precisou ter com a irmã enferma. Uma doença sem nome e sem cura que os tirou da fazenda rumo àquela cidadela e com suas economias acabou. A irmã morreu. Ele não chorou, o que não significa que não sofreu, sofre. Sem dinheiro para o velório, o jeito foi resgatar o corpo da irmã às escondidas no hospital e guarda-lo em segredo até conseguir enterrá-lo. Dormia ao lado do corpo de sua irmã para descansar do esforço que foi cavar metade da cova em barro lamacento. Descansava ao lado de sua irmã morta quando uma barulheira alta de leveza e outra de coisa dura o fizeram se assustar. Só quando o silêncio veio outra vez é que percebeu como sua respiração ficou ofegante. Sentindo as batidas do coração nos lábios ele foi, paulatinamente, tentar entender o que se passara. Os passos calmos não condiziam com o medo que quase o dominara. Quase. Após vencer o mato se deparou com uma menina desmaiada. A menina desmaiada. A dos cabelos brancos. A menina dos cabelos brancos e olhos negros que carregava uma mala marrom pesada. Ele a pegou no colo, levou-a para seu abrigo improvisado numa espécie de guarita abandonada e tentou acordá-la. Fora os sinais vitais que funcionavam bem nada mais indicava vida ali. 

Ele se afastou para olhar. O corpo da irmã morta e uma estranha desconhecida desmaiada. Lado a lado. As duas garotas compartilhavam a incógnita da vida e da morte. Lado a lado. Elas não se conheciam e nem se falavam. Mas a proximidade com o fim as tornava semelhantes. Elas se comunicavam e ele não entendia aquela conversa, ele não poderia entender porque nunca morreu, nunca dormiu por anos e nem sequer já desmaiou. Pra ele a morte era o fim, o sono profundo era o nada e o desmaio era a dúvida entre esses dois caminhos. Para elas, a morte era uma possibilidade comum e nem um pouco espantosa, dormir por anos era o ápice da dor e o desmaio era a falta de decisão. Nisso ele acertou. 

Depois da boquiaberta falta de reação ele se lembrou da mala da menina desconhecida. Voltou onde tinha encontrado, o corpo?, ele pensou se era assim que deveria nominar a carne da garota de olhos escuros. Abriu a mala mais por interesse em encontrar pistas sobre sua nova companhia adormecida do que por curiosidade. Lá dentro tinha um saco grosso preto e uma folha amarelada dobrada por cima dele. O desenho era de um mapa. Um mapa do lugar onde eles estavam agora. Um “X” marcava o que deveria ser a localidade exata de, do... mas aqui só tem..., ele pensou. Pegou a mala e saiu. Dessa vez a passadas mais largas, em direção aos dois corpos femininos que tinham quase a mesma idade do corpo dele. As duas continuavam dormindo. Como se minha irmã pudesse acordar. 

As nuvens não deixavam o sol ver o que menino fazia, mas não conseguiam esconder sua luminosidade. O garoto seguiu guiado pela obscura claridade do céu e pelas coordenadas do mapa. Dentre tantos túmulos ele parou diante de um caixão que ainda não tinha sido enterrado. O cemitério era imenso. Estranho que numa cidade pequena morra tanta gente, mas é que ali as covas começaram a ser cavadas muito tempo antes. Algumas lápides eram inteiramente descascadas não fosse pelas fotos que permaneceram intactas atrás dos vidros. Os olhos de muita gente morta o observavam curiosos, pois nunca ninguém chegara sozinho pra um enterro sozinho. De pé como uma estátua ele ficou até sentir o vento gelado entrar pelos buraquinhos de sua blusa de lã. Sem entender o que tinha acontecido ou o que estava para acontecer ele retomou a mala. Abriu o saco grosso preto e além de uma pá, havia um ferro envergado na ponta que ele tirou dali. Sem pensar muito, mas pensando que não sabia se deveria fazer o que estava fazendo ele utilizou a ponta torta para abrir o caixão. E foi o que fez. Enquanto a testa molhada denunciava um esforço perigoso, os olhos das fotografias estavam mais esbugalhados do que estiveram no momento de suas mortes. 

Um corpo. Um corpo de menino na mesma idade do corpo dele. Se sua irmã e esse rapaz já não podiam ser salvos, tomara que a menina do cabelo branco desperte, pensou. Ficou ali parado. O caixão não era muito grande, mas o tamanho parecia suficiente para dois jovens quase da mesma idade. Se havia um corpo dentro de um caixão é porque haverá um velório. Precisava correr. Quando se virou para buscar a irmã morta viu que a menina de cabelos brancos tinha também olhos pretos enormes que se aproximavam ágeis. As jabuticabas olharam para ele sem condenar o ato ou afagar a cara assustada. Havia algo mais na mala pesada que ele não percebeu. A menina tirou uma caixa pequena da mala e da caixa um relógio. Grande, com um cordão que ficou largo no pescoço dela. A garota olhava apreensiva para o menino do caixão. O tic-tac do relógio no peito dela não parecia ter pressa. Quando os dois ponteiros se encontraram o barulho da hora combinada fez a menina desesperar. Ela começou a agitar o corpo no caixão, a gritar com ele, xingar. O irmão da irmã morta ouviu um tossido que não era nenhum pouco feminino. Os olhos dele e das fotografias demoraram em acreditar, mas o menino do caixão não só tossiu como se levantou. Abraçou a menina dos cabelos brancos que chorava. Ela o ajudou a sair do caixão e quando eles iam fechá-lo novamente o irmão da irmã morta disse espera. Virou as costas e correu. A garota dos olhos negros entendeu e disse ao que ressuscitou para segui-la. Mas o menino não deixou outro carregar sua irmã. Então a dos cabelos brancos e o que quase foi enterrado o seguiram. A que morreu doente tinha o peso de um pássaro. Com doçura seu irmão a deitou na madeira dura. Deu-lhe um beijo e uma lágrima dele ficou com ela. O relógio pendurado no pescoço da outra menina avisou que tinham que agir rápido. Ela afastou o garoto do caixão e com ajuda do que parecia estar morto fechou a tampa da eterna cama. O irmão só assistiu a tudo. Estático. Machucado. Dolorido. 

Os outros dois o pegaram pelo braço. Corriam. Correu com eles sem saber porque, sem saber para onde. Mas foi, afinal, ele era sozinho agora que conseguiu descansar sua irmã. Ele era triste sem o sorriso do seu pequeno pássaro. 

Os três seguiram por caminhos completamente desconhecidos por outros moradores da cidade. Ruas estreitas com asfalto velho os levaram para uma estrada. Caminharam até as nuvens pararem de implicar com o sol porque este também morreu hoje. Foi só em completo escuro novamente que eles conversaram. O plano da menina de cabelos brancos e do que quase foi enterrado não era mais um segredo só dos dois. Era também da que ficou e do que veio junto. O que veio junto soube da fuga, da simulação da morte. Whisky bebido em copo de estanho finge o fim da vida. Faz os outros acreditarem no fim da vida. Só dessa forma poderiam viver numa cidade de bicicletas.

sábado, 5 de maio de 2012

Antes de chegar em casa

Caiu uma gota muito molhada de prédio embolorado na minha camiseta branca. O tecido que fica envolta da parte mais atingida absorve aquela sujeira amarelada. A luz do sinal vermelho ilumina minha cara de pesar olhando praquela sujeira. Uma camiseta tão branca. Que era tão branca. Agora é uma camiseta menos branca. Borrada de gota molhada do prédio embolorado velho. Borrada de gota molhada do prédio embolorado velho onde no sétimo andar mora uma também velha e embolorada senhora que chora a morte do seu gato. Camiseta branca suja de prédio embolorado com lágrima de velha também embolorada. No mesmo andar uma menina descobre o seu primeiro orgasmo. Sozinha. Três andares acima num banheiro fedido um homem embriagado caga o seu arrependimento que escorre pelos canos do prédio embolorado velho. Camiseta suja de prédio embolorado velho, de velha embolorada, de secreção de primeiro orgasmo, de merda de bêbado. O porteiro deixou restos de marmita da noite retrasada na calçada. Com a chuva que fez a comida meio apodrecida escorre no chão e muda seu caminho retilíneo quando encontra meus pés. Apodrecido também está o corpo do velho que sempre morou sozinho. Seu silêncio o fez invisível no prédio embolorado. Minha camiseta manchada de prédio sujo de velha embolorada de meleca do primeiro orgasmo de fedor da bosta do homem e de bicho comendo um silencioso cadáver queria ser invisível também. Mas não é. E eu olho com pesar pra ela.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Metalinguagem do amor

Nem sei como vou te contar
que aquele dia foi proposital
Nem sei se devo confessar
que muitas vezes te odiei
e que rasguei
a carta que não entreguei
Pensei em falar da tua
foto na minha carteira
pensei em contar do teu
amuleto no meu peito

As cores daquelas flores
Esquecidas na estante da sala
As dores dos meus amores
Perdidos em dias covardes
Os rumores dos bastidores
Antes do que ensaiei dizer
Os piores dos meus pudores
Que nunca tive, na verdade

Engole agora o meu
vômito de letrinhas
lambe
o suor das minhas mãos
aquece meu arrepio contínuo
me busca um copo de

calmante
e, por favor
alguma dose estimulante
porque agora eu confessei
entreguei a carta que rasguei
e contei do que é teu no meu

As cores daquelas flores
Esquecidas na estante da sala
As dores dos meus amores
Perdidos em dias covardes
Os rumores dos bastidores
Antes do que ensaiei dizer
Os piores dos meus pudores
Que nunca tive, na verdade

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Infância ou férias

Eu topo uma tarde feliz. Um carinho nas costas e um cafuné. Eu topo um sorriso que enruga os olhos e um abraço que alivia. Uma música que me acalme e uma bebida que me amoleça. Eu topo fugir pra não ser jogada na piscina, mas me atirar nela depois. Topo um terraço com vista pra lua. Topo almoço com toda a família. Tarde refrescante numa rede confortável. Flor que cai bem no meu nariz. Chuva bonita. Mãos lambuzadas de açúcar e cara de chocolate. Topo trepar na árvore. Brincar de esconder. Topo cócegas que roubam o ar. Cachorro que me segue até a padaria. Cheiro e brisa que me fazem parar.

Felicidades Espontâneas

Aquilo que só você e mais alguém viu e que é impossível parar de rir. Assim como sorri singelamente a garota no ônibus que provavelmente se lembrou de alguma coisa engraçada. A flor que cai bem no meu nariz, como disse num outro texto. Alguém que parecia ter me esquecido. E de repente uma corrida em volta da quadra. O cheiro de praia que às vezes sinto na cidade. A brisa fresca que vem no fim da tarde invadindo os carros das pessoas que ousam abaixar os vidros. Um bombom esquecido propositalmente na mesa de alguém querido. O oi que recebo de quem nunca vi. E de repente, um carro que carrega um cavalo no porta-malas. O abraço apertado do filho da minha amiga. A baderna do almoço feito em casa pros amigos. Uma cerveja na geladeira que você achou que não existia! E de repente balançar as pernas no terraço do prédio mais alto. Um tropeço que te faz olhar para o chão e ver uma mancha fazendo careta pra você. Um espirro que te faz olhar pra cima e ver que o céu não está nublado hoje. E de repente um cara andando de sunga numa bicicleta. E de repente, atores na rua. E de repente três pessoas vestidas inteiras de vermelho. E, de repente, um abraço que eu não esperava.

sábado, 28 de abril de 2012

Memória dos dedos

Dos lábios macios. Das mãos grandes. Do cabelo liso. Da pele suave. Da barba por fazer. O muito quente. Estou provando corpos. O leve. O que me treme. Que me extasia. O dolorido. O que amolece. Estou provando carinhos. Do malicioso. Do apaixonado. Do medroso. Estou provando sorrisos. Íntimo. Desinteressado. Envolvido. O que anestesia. O que aperta. Que ama. Que se esconde. Estou provando sexos. O que cala. O que fala demais. Tímido. Exagerado. Afobado. O tranquilo. O perspicaz. Estou provando pessoas.

Costura

Estou com teu cheiro no meu corpo 
e com vontade tua na minha boca 
Minha pele ainda se arrepia quando 
se lembra da tua 
Meus seios procuram tuas mãos com a 
mesma saudade que meus olhos investigam os teus 
investigam os teus 
Meu pescoço quer tua língua 
e minha nunca, sua respiração 
Pontas dos dedos que 
me arrepiam as costelas 
pontas dos dedos que 
descobrem teu corpo inteiro 
descobrem teu corpo inteiro 
Busco tua temperatura do mesmo jeito 
que meu tato busca o que está 
por baixo da tua roupa 
aprendo tua pela 
aprendo teu jeito 
Quero teu prazer com o meu 
como quero o que pensas

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Osso capacitado

Corpo magro e pele branca. Dedilho as costelas, aperto os braços. Ulna, rádio. Aperto as pernas. Tíbia, fíbula. Falange, falanginha, falangeta. Aperto. Clavícula, escápula. Vértebra por vértebra. Língua e pele. Maxilar, mandíbula. Lambe. Tato e osso. Posso? Corpo poroso. Olhos e boca. Corpo gelatinoso. Osso nasal, fissura supra orbital, osso lacrimal. Choro confidencial. Outra vez. Processo frontal do maxilar. Processo alveolar do maxilar, do maxilar. Maxilar. Maxi. Mais. Esterno. Articulação do quadril. Esterno. Interno. Esterno. Interno. Carpo. Metacarpo. Tarso. Metatarso. Metamorfose de mim.


(des) conhecendo

O que era aquilo? O que era aquilo ela não sabia. O que tinha feito não era o que geralmente faria. Mas nós não somos generalizações. Na maioria das vezes somos o detalhe escondido, a reação inesperada, um repentino susto pra nós mesmos. Um eu dentro de mim que eu desconhecia. Um eu dentro de mim estranho a mim. Fiz o que nunca fiz. Fiz o que não faria, mas fiz. Faço. Farei novamente, muito provavelmente, farei novamente. Sem nunca parar de pensar. Talvez fosse mais saudável pensar menos. Difícil isso. Provar. Descobrir. Sentir. Se permitir. Nunca vou parar até saber de mim, até saber quem eu sou. Entenderam? Nunca vou parar.

domingo, 15 de abril de 2012

Último capítulo


Quando você chega de repente no meu quarto porque já tem as chaves da minha casa eu pouso o livro aberto na minha coxa esquerda pra não desmarcar o conto. Pernas levemente abertas pra não amassar as páginas ou não deixar o livro cair. E de alguma forma isso te excita. A mochila cai rápida no chão como se a gravidade para ela fosse maior. Você para e fica me olhando. Pergunto que foi e você diz nada continue o que estava fazendo. Então sorrio desconfiada e te olho de lado enquanto pego o livro de mim mesma. A leitura estava boa e eu prossigo. Até esqueço que você continua aí me olhando com sorriso apaixonado e olhar de tesão. 
"sempre carregava no bolso. Gasto pelo tempo, mas muito mais pelo uso frequente e viciado. Ela o abre e os traços propositalmente borrados, mas artisticamente feitos, denunciam um garoto que vive e sente o tempo todo. O furor em registrar o que pensava ou o que via era tanto que mesmo com páginas grossas havia tinta vazada na folha seguinte, na folha anterior. Tantas fotografias da dor de viver belamente feitas com tinta preta. Em meio a corpos derretidos e comprometidos, olhos ocos, rostos repulsivos, mãos mortas, cicatrizes cortadas e vontades anuladas, ela encontra um retrato seu. Um retrato seu feito por ele. Teria ele esquecido esse caderno velho de propósito? Justamente pra que eu me veja desenhada tão bonita, tão sorridente e tão sinceramente? E ao folhear essas páginas eu descubro tantas outras ilustrações de mim. Eu deitada com a barriga no colchão e as pernas no ar, eu sentada na cadeira com os pés descalços, eu enrolada na toalha, eu nua passando creme no meu corpo, eu dormindo. Teria ele esquecido esse trapo nojento cheio de rabiscos toscos de propósito? Propositalmente pra que eu veja que, apesar de não conseguir estar comigo agora, ele me ama? Pra que eu tenha certeza de que aquelas palavras ofensivas que não combinavam com sua boca eram mesmo uma pura bobagem ensaiada de quem prefere fingir o ódio a confessar a confusão e mentir pra me fazer esquecer?” 
Minha leitura é interrompida por suas mãos grossas sem que eu te percebesse chegando. O jeito como eu engoli o ar de boca aberta e me desprendi da cadeira num susto rápido; de alguma forma isso te excita mais. E ao sentir teus dedos nas minhas coxas eu penso no garoto que fugiu covardemente. Me entrego a esse pensamento, mas me entrego também à sensação delicada que sua mão compõe com a minha pele. Ela, dormente, se acende com seu carinho sensual que me instiga a te querer mais uma vez. E nos encontramos com os olhos e com os corpos. Estes tão juntos e desejados que meu prazer escapa em lágrimas. Rimos disso tudo sem nos desprendermos. Intensidade compartilhada que explode. 


E agora não sei se vou fugir covardemente como o garoto do livro esquecendo alguma pista que diz que te amo.

A Maior Vontade

Esses dois copos cheios de bebida. O meu e o seu. Este banco, esse banco. Sua respiração e a minha. Seu cheiro que me amolece e me arrepia de desejo. Esses olhos. Ah, esses olhos!
Esses dois copos meio cheios, meio vazios de bebida. O meu e o seu. Este banco. Esse banco. Sua respiração ofegante. O cheiro de whisky que vem da sua boca e me embebeda.
Esses dois copos vazios de bebida. O meu e o seu. Este banco, esse banco. Esse agora tão perto deste. Seus olhos semi abertos e essa boca ousada que me faz querer ir com você.
Nós dois. O tapete bonito do restaurante do hotel. O elevador. O tapete bonito o corredor do hotel. A porta do quarto. Eu e você. Essa cama tão desejada. Eu e você. Este travesseiro. Esse travesseiro. O meu e o seu. Se já não estivéssemos roncando eu até que desligaria a luz do abajur.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Um lugar

Num centro sujo esteticamente cinematográfico pra quem vai escrever um texto como esse o cheiro de cachaça impregnado na roupa alheia de dois dias atrás se mistura com o bafo quente de cigarro que sinto na boca de quem passa. Multidões socadas se permitem encostar generosamente nos corpos vizinhos para conseguir um lugar no ônibus ou pelo menos nele entrar. A igreja em reforma abriga os ratos que logo vão migrar para o boteco ao lado. As calçadas desiguais enganam os pedestres que sentem arder suas narinas com o fedor invasivo da urina que algum bêbado ou até um morador de rua deixou cair pesadamente ali, aqui. O cheiro agudo piora quando uma velha exala seu perfume doce de quem está pronta para ir ao bingo. As estátuas das praças já não se enjoam com o odor deixado pelas pombas em suas cabeças cor de bronze carcomido e assistem o primeiro beijo tímido de um casal; e também o fim da história de outros dois. Elas imaginam o que aconteceu com o menino que levou bronca do pai e se comovem com o choro daquela mulher. Aquela que ontem mesmo passou por ali entupida de craque berrando por causa de um homem. Os prédios altos, sujos e escuros ao competirem com outras arquiteturas escondem o último sexo sem consentimento ocorrido na cidade. Eles abrigam os sujeitos expulsos de uma rua em revitalização. A felicidade boba de um estudante sortudo que ganhou cachaça em dose tripla do dono do bar se confunde com a amargura de um recém desempregado que acaba de chegar para com o jovem dividir o balcão. A música pesada de um bar underground encontra a reverberação do samba de raiz que diverte mais alguns na mesma rua. Eu canto o que eu vejo. E eu vejo diversidade. Eu escrevo o cheiro que entope meu nariz. E eu respiro putrefação. Eu falo do que eu sinto e isso não é tão singular assim. Medo, interesse, pavor, curiosidade, repulsa e vontade. Um turbilhão numa caminhada. Uma imensidão num minuto. Diversas magnitudes num lugar.