A menina de cabelo branco e olho preto pegou a mala pesada. Saiu da casa de madeira antes do sol aparecer. A rua longa, reta e cinza tinha apenas pequenas moradias nas margens do asfalto. Carros não havia naquele lugar. Apenas patinetes, mas ela ia a pé e silenciosa. Os olhos saltados da garota branquela tinham um foco preciso. No final da rua havia um terreno com mato seco que dava para os fundos de um lugar. Difícil acesso. Mato tão seco quanto o aspecto das folhas avermelhadas e escuras que caíram das árvores aparentemente mortas. Para não chegar lá pelas portas da frente era preciso atravessar o aglomerado de plantas velhas altas. Como é comum que as pessoas busquem a entrada formal e mais fácil, alcançar o mato só era possível depois de descer um enorme barranco e ninguém se preocupava com isso. O tempo estava úmido. Ah, sim. O tempo estava úmido. Então se você criou a imagem de uma rua seca pense agora que ela está com vestígios de chuva que caiu na madrugada que ainda não acabou.
O barranco estava escorregadio e o peso da mala atrapalhava o equilíbrio. Primeiro a mala, depois a menina; mala para frente, garota por último, menina adiante, mala atrasada. Com esse revezamento o caminho era menos perigoso. O sol já queria surgir, mas as nuvens não o deixavam ver o que garota quer fazer. Quanto mais íngreme ficava o morro mais improvável era achar firmeza para pousar a mala. A menina agora estava adiante do objeto marrom que, de repente, se desprendeu do paredão e caiu por cima dela. A pancada na cabeça provocou um desmaio imediato que as fizeram rolar, a mala e a garota, direto para o pé do morro.
O menino estava muito magro. Desgastado com o cuidado que precisou ter com a irmã enferma. Uma doença sem nome e sem cura que os tirou da fazenda rumo àquela cidadela e com suas economias acabou. A irmã morreu. Ele não chorou, o que não significa que não sofreu, sofre. Sem dinheiro para o velório, o jeito foi resgatar o corpo da irmã às escondidas no hospital e guarda-lo em segredo até conseguir enterrá-lo. Dormia ao lado do corpo de sua irmã para descansar do esforço que foi cavar metade da cova em barro lamacento. Descansava ao lado de sua irmã morta quando uma barulheira alta de leveza e outra de coisa dura o fizeram se assustar. Só quando o silêncio veio outra vez é que percebeu como sua respiração ficou ofegante. Sentindo as batidas do coração nos lábios ele foi, paulatinamente, tentar entender o que se passara. Os passos calmos não condiziam com o medo que quase o dominara. Quase. Após vencer o mato se deparou com uma menina desmaiada. A menina desmaiada. A dos cabelos brancos. A menina dos cabelos brancos e olhos negros que carregava uma mala marrom pesada. Ele a pegou no colo, levou-a para seu abrigo improvisado numa espécie de guarita abandonada e tentou acordá-la. Fora os sinais vitais que funcionavam bem nada mais indicava vida ali.
Ele se afastou para olhar. O corpo da irmã morta e uma estranha desconhecida desmaiada. Lado a lado. As duas garotas compartilhavam a incógnita da vida e da morte. Lado a lado. Elas não se conheciam e nem se falavam. Mas a proximidade com o fim as tornava semelhantes. Elas se comunicavam e ele não entendia aquela conversa, ele não poderia entender porque nunca morreu, nunca dormiu por anos e nem sequer já desmaiou. Pra ele a morte era o fim, o sono profundo era o nada e o desmaio era a dúvida entre esses dois caminhos. Para elas, a morte era uma possibilidade comum e nem um pouco espantosa, dormir por anos era o ápice da dor e o desmaio era a falta de decisão. Nisso ele acertou.
Depois da boquiaberta falta de reação ele se lembrou da mala da menina desconhecida. Voltou onde tinha encontrado, o corpo?, ele pensou se era assim que deveria nominar a carne da garota de olhos escuros. Abriu a mala mais por interesse em encontrar pistas sobre sua nova companhia adormecida do que por curiosidade. Lá dentro tinha um saco grosso preto e uma folha amarelada dobrada por cima dele. O desenho era de um mapa. Um mapa do lugar onde eles estavam agora. Um “X” marcava o que deveria ser a localidade exata de, do... mas aqui só tem..., ele pensou. Pegou a mala e saiu. Dessa vez a passadas mais largas, em direção aos dois corpos femininos que tinham quase a mesma idade do corpo dele. As duas continuavam dormindo. Como se minha irmã pudesse acordar.
As nuvens não deixavam o sol ver o que menino fazia, mas não conseguiam esconder sua luminosidade. O garoto seguiu guiado pela obscura claridade do céu e pelas coordenadas do mapa. Dentre tantos túmulos ele parou diante de um caixão que ainda não tinha sido enterrado. O cemitério era imenso. Estranho que numa cidade pequena morra tanta gente, mas é que ali as covas começaram a ser cavadas muito tempo antes. Algumas lápides eram inteiramente descascadas não fosse pelas fotos que permaneceram intactas atrás dos vidros. Os olhos de muita gente morta o observavam curiosos, pois nunca ninguém chegara sozinho pra um enterro sozinho. De pé como uma estátua ele ficou até sentir o vento gelado entrar pelos buraquinhos de sua blusa de lã. Sem entender o que tinha acontecido ou o que estava para acontecer ele retomou a mala. Abriu o saco grosso preto e além de uma pá, havia um ferro envergado na ponta que ele tirou dali. Sem pensar muito, mas pensando que não sabia se deveria fazer o que estava fazendo ele utilizou a ponta torta para abrir o caixão. E foi o que fez. Enquanto a testa molhada denunciava um esforço perigoso, os olhos das fotografias estavam mais esbugalhados do que estiveram no momento de suas mortes.
Um corpo. Um corpo de menino na mesma idade do corpo dele. Se sua irmã e esse rapaz já não podiam ser salvos, tomara que a menina do cabelo branco desperte, pensou. Ficou ali parado. O caixão não era muito grande, mas o tamanho parecia suficiente para dois jovens quase da mesma idade. Se havia um corpo dentro de um caixão é porque haverá um velório. Precisava correr. Quando se virou para buscar a irmã morta viu que a menina de cabelos brancos tinha também olhos pretos enormes que se aproximavam ágeis. As jabuticabas olharam para ele sem condenar o ato ou afagar a cara assustada. Havia algo mais na mala pesada que ele não percebeu. A menina tirou uma caixa pequena da mala e da caixa um relógio. Grande, com um cordão que ficou largo no pescoço dela. A garota olhava apreensiva para o menino do caixão. O tic-tac do relógio no peito dela não parecia ter pressa. Quando os dois ponteiros se encontraram o barulho da hora combinada fez a menina desesperar. Ela começou a agitar o corpo no caixão, a gritar com ele, xingar. O irmão da irmã morta ouviu um tossido que não era nenhum pouco feminino. Os olhos dele e das fotografias demoraram em acreditar, mas o menino do caixão não só tossiu como se levantou. Abraçou a menina dos cabelos brancos que chorava. Ela o ajudou a sair do caixão e quando eles iam fechá-lo novamente o irmão da irmã morta disse espera. Virou as costas e correu. A garota dos olhos negros entendeu e disse ao que ressuscitou para segui-la. Mas o menino não deixou outro carregar sua irmã. Então a dos cabelos brancos e o que quase foi enterrado o seguiram. A que morreu doente tinha o peso de um pássaro. Com doçura seu irmão a deitou na madeira dura. Deu-lhe um beijo e uma lágrima dele ficou com ela. O relógio pendurado no pescoço da outra menina avisou que tinham que agir rápido. Ela afastou o garoto do caixão e com ajuda do que parecia estar morto fechou a tampa da eterna cama. O irmão só assistiu a tudo. Estático. Machucado. Dolorido.
Os outros dois o pegaram pelo braço. Corriam. Correu com eles sem saber porque, sem saber para onde. Mas foi, afinal, ele era sozinho agora que conseguiu descansar sua irmã. Ele era triste sem o sorriso do seu pequeno pássaro.
Os três seguiram por caminhos completamente desconhecidos por outros moradores da cidade. Ruas estreitas com asfalto velho os levaram para uma estrada. Caminharam até as nuvens pararem de implicar com o sol porque este também morreu hoje. Foi só em completo escuro novamente que eles conversaram. O plano da menina de cabelos brancos e do que quase foi enterrado não era mais um segredo só dos dois. Era também da que ficou e do que veio junto. O que veio junto soube da fuga, da simulação da morte. Whisky bebido em copo de estanho finge o fim da vida. Faz os outros acreditarem no fim da vida. Só dessa forma poderiam viver numa cidade de bicicletas.