terça-feira, 26 de junho de 2012

Camomila e Café

Segunda-feira. Pouco passa da meia-noite, mas a cidade já está quieta. Silenciosa. Alguns carros ainda não retornaram para as suas garagens e, fora isso, só os passos dela fazem algum ruído, de vez em quando. Ela volta sozinha como toda noite acontece. Como gosta daquela rua, da quietude. Ultimamente tem sido difícil cumprimentar colegas de lugares comuns e responder, tudo bem sim e você. Podia o mundo deixá-la por um instante, é o que ela pensa. Uma caminhada. Quinze minutos. Solidão precisa essa. Pra adiar o encontro com alguém em casa, pra aumentar a chance de todos terem já se recolhido ela diminui os passos. Como companhia uma pedra que está chutando há dois quarterões. Uma brisa fria inesperada a fez fechar o casaco e esquecer o brinquedo. Cheiro de chuva. Aquele que chega devagar, mas de repente. O céu ta preto de nuvem que quer chorar. Ela também quer. Ela também quer. Você já caminhou de olhos fechados? Ela já. Ela está. É que começou uma garoa calma e ela gosta de sentir pequenas bolinhas úmidas nascerem do rosto. É certo que não nascem, caem. Mas de olhos fechados é como se tivesse surgido da pele. Se as lágrimas não transbordam dos olhos, ela se consola ao imaginar que a pele chora. Pára. Fica imóvel no meio da rua vazia de gente. Tem árvores desbotadas que começam a ficar nuas. Tem o vento cortando a cara pena que não corta o sentimento. Tem alguma coisa sofrendo. O cheiro doce da árvore daquela casa de esquina vem como que para abraçá-la. Afago invisível que a faz sorrir dolorosamente. A chuva ta mais forte e tão bonita. Parece besteira, motivo pra chateação, mas se o choro ta seco a água que a enxarca disfarça o que ta estampado na cara e não quer sair do coração.

domingo, 24 de junho de 2012

Escultura de pele

Me assustei quando me vi de fora.
Me assustei quando me vi de fora e me vi.
Me assustei quando me vi de fora e me vi parada sozinha.
Parada sozinha costas na parede pernas cruzadas pra fora da cama.
Fora de mim boca fechada. Meu corpo falando pra mim quando eu me assustei quando me vi de fora que eu tô pensando loucura. Isso não se pensa.
Isso é doença da cabeça menina não pensa nisso.
Eu pensando no que eu pensando.
Eu pensando se o que eu pensando é doença da cabeça ou doença de ser gente.

Me assustei quando me vi fora.

Me assustei quando me vi na expressão que eu tenho fora.


Fora.
Fora.
Fora.

Me assustei quando vi de fora como sou dentro.

Tudo bem.

Tudo bem. Alguém derramou o leite, mas tudo bem. Meu time perdeu, meu coração foi traído, um amigo morreu, roubaram minha vergonha. Cuspiram no meu ego, mas tudo bem. Acabou, já não existe. Uma hora passa, tem que passar. Sangrou minha alma, doeu meu sentimento. Machucou. Tudo bem; que seja infinito enquanto dure ou é infinito agora. Mas o agora também é depois. E tá me doendo o agora de ontem, de um mês atrás. O agora do passado no meu agora de agora. Chove onde ta molhado e faz sol onde ta seco. Ouço um gemido e quem chora é meu âmago, mas ta tudo bem, ta tudo bem.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Bonito

Eu me lembro do pouco que vivi com você
e do muito que temos pra viver
Juntos
No mesmo almoço
No mesmo bar
Na mesma cama
Embaixo do mesmo chuveiro
Protagonistas apaixonados do mesmo filme

Eu me lembro do pouco que vivi com você
e do muito que temos pra viver
Juntos
O show do mês que vem
O sol do verão próximo
Meu quarto novo
Seu quarto velho
Atores da mesma peça

Eu me lembro do pouco que vivi com você
e do muito que temos pra viver
Juntos
Violão no parque
Vinho na chuva
Sorriso no rosto
Ressaca no domingo cedo
Confidências no domingo tarde
Beijo na boca

Abraço
nu
corpo
inteiro

Eu me lembro do muito que vivi com você
Juntos
No mesmo almoço
No mesmo bar
Na mesma cama
Embaixo do mesmo chuveiro
Compositores da mesma banda

Eu me lembro do muito que vivendo com você

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Sorvete

Olhou para o banco da praça. Olho em volta. Todos continuavam suas tarefas cotidianas. Caminhou tímida até o banco como se alguém a vigiasse e sentou-se. Desconfortavelmente, é verdade, mas sentou-se. Sem descansar a pasta grudada ao peito a mulher experimentou parar um pouco e observar. Depois de uns minutos reparou que preferia investigar as crianças que eram arrastadas pelas mãos entrelaçadas com adultos apressados. Reparou também que a pasta estava largada em seu colo. A coluna dela já não estava tão ereta e as pernas não estavam rigidamente fechadas. Mas isso fui eu quem reparou, não ela. Os ombros relaxados denunciavam que estava mais íntima do encosto do banco. Mais íntima da praça também. E de quem via. 

E de quem a via. E de quem a vida. E quem a vida deixou relaxar um pouco também. 

Levantou-se sem saber ao certo porque estava fazendo isso, mas tudo bem, ela tinha que aprender a pensar menos. Rindo de si mesma pediu uma casquinha com uma bola de morango e outra de chocolate. E neste dia também resolveu caminhar até sua casa. Ela ria do que estava fazendo enquanto recordava sua infância numa rua sem saída de terra batida. Relembrando-se dos joelhos ralados, das unhas imundas, dos pés descalços. Dos muros e árvores escaladas, das corridas, das caídas, das risadas. 

Mas os sorrisos de rugas nos cantos dos olhos que as memórias do parágrafo anterior causaram se cessaram no exato momento em que o sorvete caiu no chão. Caiu o sorvete, caiu a pasta, caiu a felicidade. Pensando bem, a felicidade tropeçou. E no tropeço sim se deixou cair. Ela - não a felicidade, mas a mulher - ficou parada observando agora não a sua vida de menina que passava na tela da memória ou a vida de quem passava, mas o sorvete rosa que ia se misturando com o sorvete marrom. Um pouco estava derretendo e o outro pouco estava derretido. Então ela pensou que o derretendo e o derretido eram, em algum momento invisível, uma coisa só. Com os braços soltos ao lado do corpo e a cabeça baixa ela viu as fissuras da calçada serem pintadas de um doce não tão colorido assim. Eu vi sua estagnação, sua decepção. Eu a vi se abaixando. Ela se abaixou. Eu a vi se sentando. Ela se sentou. Eu a vi chorando. Mas ela não chorou. 

Ela contemplava o gosto nostálgico da infância se desmanchar e constatou que a casquinha do sorvete continuava ali, inteira. Ela pensou que queria ser a casquinha, não o sorvete. E não era necessário ser uma casca tão firme assim. Bastasse que fosse uma casquinha sua. Eu doí quando ela pensou isso porque começou a chover e na chuva a casquinha começou a amolecer. Elas; não a casquinha e a chuva; mas a mulher e a felicidade, amoleceram também. E derretidas foram embora. A mulher pegou a pasta com um gesto obrigatório de quem precisa daquilo para o dia seguinte. Caminhou devagar e molhada até sua casa como quem vai enfrentar uma noite acessa. Ela deitou no travesseiro com uma cabeça que não aprendeu a pensar menos. 

E eu me molhei na chuva até que a casquinha morresse.

terça-feira, 12 de junho de 2012

A ferramenta da engrenagem não conseguia mais funcionar.


Despertador. Despertador desperta. Despertador desperta. Despertador dorme. 
Adormecida desperta. 


Abre os olhos. As pupilas dilatadas miram o quarto desconjurado. Fecha os olhos. A infiltração da parede escorre água lenta. Molha o chão. Ela quase não consegue, mas finalmente se move. Senta com as mãos apoiadas na cama e os pés no chão. Molha os pés. Na água que escorre devagar da infiltração. Impossível secar. É contínua. Continua.

Já faz um tempo. 

O chão não seca e a parede está cada vez mais arenosa por dentro. Os grãos duros de areia se esfregam um noutro e fazem um ruído grosso. Ela arrasta a parede, mas ela não sai do lugar. Ela arrasta a parede, mas ela não sai do quarto. Seus pés enrugados deslizam no piso fraco. Embaixo da fechadura da porta tá profundo e escuro.

Morrendo. Doendo por morrer. 


Ela estava muito fria. A porta do armário isolado estava emperrada. A água subia mais. E mais. Ela gritava na tentativa de aumentar sua força e abrir a porta emperrada do armário isolado. Ela caiu e seu corpo molho nas lágrimas da parede da infiltração. Quando conseguiu viu dentro.

Vermelho. Só havia o que vestir vermelho. 

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Baionetas no estômago

Justo no do domingo de manhã. Eu com cara de quem acabei de acordar, mas quem não dormi a noite inteira. A cama grande demais, apesar do colchão de solteiro. Os pés demorando mais pra esquentar e o lençol frio onde não tinha eu. Onde não tinha você. Busco qualquer música bem específica pra escutar e encontro, mesmo sem querer encontrar, um vinil que você esqueceu. Ou que não veio buscar. A vitrola respira perto de mim, mas não faz cosquinha atrás da orelha. O vinho também solitário me esquenta, mas não faz carinho na barriga. As lágrimas encontram minha boca, mas não me beijam. Eu posso andar pelo apartamento enquanto dure a madrugada que nenhum abraço-surpresa que me assusta pelas costas vai dizer que eu tô bonita nessa calça de moletom cinza sem calcinha. Meu corpo sofreu a noite toda de abstinência do teu. Eu tremi a noite toda de abstinência de você. E justo no do domingo de manhã. Eu com cara de quem acabei de acordar, mas quem não dormi a noite inteira. A primeira roupa que vi na minha frente e o cabelo ainda bagunçado. Fui comprar uns sonhos pra acompanhar o suco de laranja que iria fazer. Uma flor pra colocar na mesa.

Bem no domingo de manhã. Eu com os olhos estalados como se eles tivessem descansado a noite inteira. A cama extremamente desconfortável sem o peso de metade de você em cima de mim. O silêncio me incomoda. O silêncio da sua voz tagarela me incomoda. Enquanto tomo banho percebo a prateleira organizada demais. A neblina branca mostra um coração sorridente desenhado no box. Quando visto a camiseta percebo que estou molhado. Mesmo estando seco. O vento assovia, mas é afinado demais. O cobertor é quente, mas não sabe me abraçar. A capa do livro que você esqueceu, ou que não veio buscar, me mira, mas seus olhos não brilham. Eu posso ficar na poltrona da sala enquanto dure a madrugada que nenhum gemido vai me sussurrar no ouvido. Nenhuma mão delicada com cheiro de pêssego vai me delinear o rosto. Nenhum sorriso vai me seduzir. Meu corpo sofreu a noite toda de abstinência do teu. Eu tremi a noite toda de abstinência de você. Bem no domingo de manhã. Eu com os olhos estalados como se eles tivessem descansado a noite inteira. A aparente roupa de quem não acordou no domingo pela manhã. Fui comprar café pronto. Dois pra me acompanhar nas torradas matinais. 

E justo no do domingo de manhã. Eu com cara de quem acabei de acordar, mas quem não dormi a noite inteira. A primeira roupa que vi na minha frente e o cabelo ainda bagunçado. Fui comprar uns sonhos pra acompanhar o suco de laranja que iria fazer. Uma flor pra colocar na mesa. Na sua mesa. Mas te encontrei no meio do caminho com dois copos de café pronto e a aparente roupa da última madrugada. 

Bem no domingo de manhã. Eu com os olhos estalados como se eles tivessem descansado a noite inteira. A aparente roupa de quem não acordou no domingo pela manhã. Fui comprar café pronto. Dois pra me acompanhar nas torradas matinais. Que eu ia fazer na sua cozinha. Mas te encontrei no meio do caminho com uma flor na mão.

sábado, 2 de junho de 2012

Apressurada sem sopro inspirado

Achei delicado eu sozinha brincando com o fuxico de um marcador de livros parada no ponto esperando o ônibus que não chega olhando pra baixo com um livro de nome ‘Las mujeres más sólas del mundo’. Livro que eu li tão pouco que é como quase não comecei. É que eu gosto tanto daquela capa que fico olhando pra ela e a imagino em movimento. Daria uma cena bem bonita. A mulher de pernas brancas e vestido preto que não vemos o rosto e a vemos de costas correndo numa rua onde só tem ela. Ela foge? Ela busca? Será que ela tá com pressa como eu que tenho 45 minutos pra chegar o ônibus e chegar ao cinema ou será que ela tá assustada? Eu tô fugindo das pessoas porque parece que é hora de não esperar ninguém e fazer tudo sozinha como quase sempre foi. Alguém me acompanha? Não? Tudo bem vou assim mesmo. Só que hoje eu nem pergunto mais. Saio. Ou fico e choro. Ou vou e choro. E nem sempre quando a gente chora tem lágrima. É como se os órgãos chorassem por dentro, só que como – é óbvio – órgãos não choram acontece que eles ficam trocando de lugares entre eles. O estômago vai pra garganta e o rim no pulmão. O pâncreas segue tremendo pra combinar com seu nome, encontra o coitado do apêndice perdido no meio do caminho sem saber o que fazer até que chega à casa da bexiga que sempre tem alguma coisa pra gente tomar. Essa sim chora. E quando eu espirro três vezes atchim atchim atchim aquele menino que tinha certeza que eu não reparei que ele me olha há uns dez minutos me diz saúde e eu obrigada. Quando a senhora de maquiagem eterna e saia de veludo roxa aponta seu dedo maior de unhas vermelhas pra chamar o motorista e pedir pro motorista parar um pouquinho depois do ponto ela desce um pouquinho depois e me olha rindo pra minha cara porque eu jurava que ela não tinha reparado que eu a reparava há uns dez minutos. Compro entradas pra dois filmes porque acho que vou ver todos e acaba que durmo no primeiro. Quando acordo quero ir embora só que pra não atrapalhar quem parece interessado naquela historinha sem graça e clichê de um dramaturgo fodão e velho que trepa com suas atrizes eu espero uns vinte minutos e durmo de novo acordo e o cinema já está vazio. Só quando minha chave caiu é que reparei que ela não tem segredo e aí qualquer um pode entrar na minha casa e ninguém entra. Depois de passar pela cozinha e antes mesmo de chegar ao quarto o sofá da sala me sugou. Rolou uma correria antes seguida de uma luta de fuga que eu não pude vencer. O bom de bater nele é que não dói minha mão. Foi mais ou menos assim o sofá começou a remexer enquanto as almofadas de sentar se tornaram pés e as almofadas de encostar eu não sei o que aconteceu com elas. O sofá era mais alto que eu, o que nem é difícil, e tinha voz grossa e assustadora que me fazia gritar mais ardido e agudo que minha voz cotidiana. Nós corríamos pela casa eu na frente e ele me perseguindo até que escorreguei num tomate e só não caí porque ele me segurou e nesse momento rolou um momento de tranquilidade até que eu tentasse correr uma vez mais. Coitada de mim que fiquei presa no encontro de duas paredes. Aí não teve jeito o sofá me engoliu e voltou ao seu lugar pra que ninguém perceba minha falta. Aqui dentro tá escuro apertado eu tô sozinha. A diferença daí de fora é que fica confortável aqui e o sofá me abraça apesar da sua cara de mal. Não sei quando volto.