terça-feira, 29 de maio de 2012

Polainas

Já fazia tempo que o inverno prometia chegar, mas ninguém mesmo. Acreditava Camile que dia ou outro ia. Acontecer de ficar frio?, perguntava com deboche a maioria que. Desconfiava Camile da incerteza, ela sabia que algum dia ia ter. Inverno para apreciar. Tudo muito quente ali durante o dia. Era como noite quando o sol estava. Camile em seu quarto pensando há quanto tempo. A chuva não havia faz tempo. 

Cidade quente tem os costumes mais frescos que consegue. A vida dormia durante o dia para sair na rua só quando era noite. Sair de passeio, sair a trabalho, sair a estudo. Enquanto o resto do mundo se repousava em seus quartos escuros roubando a coberta de quem dorme junto, todos ali estavam com os olhos estalados e as mentes funcionando. Enquanto muitos que queriam aliviar a bexiga tropeçavam no escuro do sapato que está no meio do corredor, a cidade de Camile acendia luzes artificiais. E apesar do sol insistentemente tórrido a rachar os frutos caídos no chão e a esturricar as roupas esquecidas no varal, quem prefere ler e produzir pela madrugada se muda para Polainas. É para poder existir de noite sem ser estranho. E mesmo com o sol abrasador rompendo pulseiras artesanais antes do tempo, a maioria das pessoas de Polainas não tinha cor. Antes, quando a pele suportava caminhar durante o dia pelas ruas, os moradores dali até tinham alguma expressão de melanina para alegrar o corpo. Mas hoje todos preferem ir pela sombra da lua. E a culinária preferiu não colocar pimenta na comida dali. 

E por ser quente assim muita coisa secou. Não só lagos, rios e piscinas de plásticos. Não só as poças dos buracos das calçadas. Não apenas caixas d’água e chafarizes. Mas também o orvalho secou. As gotículas de água que sempre sobram dentro das mangueiras, as gotículas de fora da garrafa que tem bebida gelada. A coriza do nariz, o suor do meio-dia; as lágrimas. As lágrimas também. Porque em lugar seco lágrima é água e não pode ser desperdiçada. Sem nada líquido para sair da alma por meio dos olhos, o choro era de lã. Sim, as pessoas de Polainas choravam linhas de tricotar. Os recém-chegados até choravam água antes de suas células quase secarem. As cores das linhas variavam de morador para morador, mas geralmente, as de felicidade tinham coloração azul-claro; as de tristeza eram cinzas; as de amor, rosas; as de paixão, vermelhas; as de raiva, roxas; as de forte emoção, magenta; e as de dor física eram sempre uma surpresa porque dependem do estado emocional anterior ao tombo, ao corte ou à pancada. A única cor igual para todos ali era a do luto: linhas grossas e pretas. Em Polainas, a dor do choro era dor duplicada. Dor de joelho ralado ou de coração cortado somada ao incômodo de chorar quente num cidade que não é fria. 

Como ninguém queria guardar lágrimas de lã era comum ver o chão da cidade, os gramados dos parques e os pisos dos ônibus coloridos com fios soltos. Claro que eles eram poucos porque quase ninguém chora em público. E claro que esse colorido era sutil porque só aos olhos de Camile é que ganhava brilho. Os choros das ruas são, geralmente, choros de cores-surpresa porque a dor do amor, da perda e da angústia ficam para o colo do amigo, para a cara de conhecimento do analista ou para o travesseiro isolado. Aliás, quase ninguém queria guardar lágrimas de lã. Quase. Camile queria. Camile guardava. Ela recolhia todos os cordões que encontrava. Nos dias em que estava cansada demais para caminhar ou nos dias em que queria ler seus livros, parava num ponto estratégico de uma praça. Ali havia um buraco quase imperceptível em que muita gente tropeçava. Algumas delas, principalmente as crianças e estas todas, choravam quando a pele rompia ou com o susto inesperado. Interessante, percebeu Camile, que ninguém fazia nada em relação àquela falha na calçada. Nem ela mesma. Se sentindo extremamente sarcástica e fria quando foi recolher os fios do último choro alheio que antecedeu esse seu pensamento ela se enfezou, guardou os óculos grandes na mochila e arranjou um galho de árvore bem chamativo para que mais nenhum otário que passa ali todos os dias caísse ou deixasse que isso se passasse com seus filhos. 

Era no baú embaixo da sua cama que ficava em cima da casa que Camile guardava os choros das pessoas. Eles não ficavam ali espalhados, mas compunham peças de inverno que teriam uma finalidade bem específica com a troca de clima. Troca de clima que chegou. De dentro dos armários para envolver os corpos: as roupas de inverno, que já estavam tristes por acharem que nunca mais seriam lembradas aproveitaram, com muito prazer, as caminhadas pelas ruas. Cumprimentavam-se sem que ninguém percebesse. O assunto às vezes era interrompido quando alguém descia um ponto antes na parada do ônibus. Ou quando outro fechava o casaco na tentativa de se aquecer ainda mais, deixando assim, a blusa que falava sufocada com as palavras que queriam sair. O céu deixou de ser azul enquanto a preguiça das pessoas deixou de aparecer depois do almoço e começou a se manifestar quando o relógio despertava. Mas a mudança mais marcante é que aos poucos todos preferiram sair durante o dia e fazer igual ao resto do mundo durante a noite. A cidade mudou de costumes. De costumes frios para costumes quentes. De água gelada para água calientada. De pouca para muita roupa. E a culinária colocou pimenta na comida dali. Aliás, quase todos. Camile continuava gostando da noite. 

Camile saia para caminhar enquanto todos dormiam. E consigo levava o conteúdo daquele baú. Quando a cidade repousava ela colocava nos cantos de Polainas as lãs choradas. Em cima de um banco, uma luva; no galho da árvore, um cachecol; no muro sujo, um gorro; no meio da rua, uma polaina colorida. Mas antes mesmo de todos se despertarem, agora quando o sol também despertava, Camile recolhia o que não era encontrado. Então só quem tinha coragem de não abandonar a noite ou quem simplesmente gostava muito dela, é que podia ter o pesar ou a felicidade das lágrimas transformadas em presentes de carinho quente enviados por algum desconhecido. 

Durante o dia as pessoas que caminhavam na. Noite quase sem ruídos se escutavam. Vozes pra falar do que não se diz durante. O dia era o momento de reparar em quem é. Cúmplice da noite que. Busca Camile o próximo jeito de dizer: respire, repare.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Meias coloridas com os calcanhares rasgados

Ela é doce e gosta de cobertura de caramelo
Toma café com açúcar
(ela nunca usa adoçante)
Sorri quando passa uma criança ou quando
vê um cara gente boa cantando raggae no metrô
Ela esconde detalhes na sua carteira
Rabisca com carinho a folha do seu caderno
E não usa pó facial
Olha pela janela, olha pra dentro da sua janela
Ela espanta a fumaça do cigarro
Sim, ela tem TPM
e é nervosinha
Ela usa batom
vermelho
batom vermelho
Gosta de ganhar um abraço
Ela gosta de dar beijinhos
Prefere não discutir se está bêbada
e sempre acha que nunca mais exagera quando a ressaca a desperta
e sempre acha que...
...
mas isso ela não me contou
(isso ela não conta)
Gosta das cores dos muros
Gosta de quando não consegue parar de rir
E não usa lentes de contato
E não gosta do que não gosta
e é insegura
pequena
medrosa
reflexiva
covarde
pequena insegura, pequena, medrosa, reflexiva e covarde
que gosta do céu azul
e de ver seu avô comendo sopa
e de almoços em família
brigadeiro com amigas
dormir durante o filme depois do almoço pra
ver o filme depois
Chorona
Chorosa
Que vai te dizer pra olhar aquela flor que tá legal
e que vai te fazer esperar pra pisar numa outra
Ela gosta de balanços
E gosta de estar apaixonada
E usa uma roupa com coraçõezinhos
Mas
o que ninguém vê
é que
ela usa
meias coloridas com os calcanhares rasgados

terça-feira, 15 de maio de 2012

Cinema

Viagem de rotina para... estudos. É, foi o que eu assinalei dentre as opções daquela passagem. Parada de 15 minutos num desses grandes postos onde todos os ônibus de todas as linhas descansam rapidamente seus motoristas para um xixi e um pingado. Eu fico no ônibus. Sentada na primeira poltrona do corredor no lado do passageiro, eu apenas espero o recomeço da viagem. Aliás, eu apenas esperava porque de repente vejo algo que me transporta rapidamente pra sensação de estar vendo um filme. Pelo pára-brisa gigante do ônibus eu vi uma mulher. Calça jeans, camiseta branca e casaco fino preto que tentava a esconder do vento. Cabelo preso, mas meio solto, um pouco desarrumado. Ela fumava. De pernas cruzadas apoiada sobre elas com um dos cotovelos, ela fumava. Tinha uma expressão de dor, de tristeza e de sofrimento. Sim, essas três mescladas. Mas por estranho que possa parecer dizer isso agora, ela se mostrava calma e confiante. Suas sobrancelhas quase se juntavam, mas ainda sim ela parecia serena. E ela fumava com muita vontade. Eu a senti saciar aquele desejo desesperado de um trago. Eu vi o prazer da nicotina se misturar ao peso da realidade que a comovia. O intervalo entre cada tragada era rápido, só uma tomada de fôlego para a próxima. Aquela cena, apesar de toda a minha descrição aqui, é inefável. E eu digo cena porque era uma cena e eu pensava: “não é possível, essa mulher tá atuando pra mim!”. Eu preciso carregar uma pequena filmadora comigo. A porta que divide o motorista dos passageiros estava aberta para que a livre circulação reinasse. Ela é feita de vidro grosso da metade pra cima. Mas naquele momento não era uma porta, era uma tela. Como se soubesse que eu me saciava com aquela cena, um menino ajuda a compô-la. Ele se senta em qualquer lugar que me permite vê-lo pelo vidro. Ele está de bermuda larga e chinelo, mas não me lembro mais se de moletom ou camiseta regata. Não me esqueço da sua inquietação. Sentado na ponta do banco largo de cimento que reveste a parede inteira do corredor que dá acesso aos banheiros, ele me pareceu ansioso. Ansioso e preocupado com alguma coisa. Talvez até com um pouco de medo. Mas a ansiedade dele não repercutia pelo corpo todo. Ela estava nos olhos que se movimentavam rapidamente e na cabeça que ora procurava um lado, ora outro. Então eu estava no melhor acento assistindo à cena mais espontânea e bem feita de toda a minha vida. Eu via a mulher diretamente pela cabine do ônibus e o via por um reflexo. Aqueles dois estavam um pouco distantes entre si, mas me pareciam formar uma unidade. A unidade da angústia humana; cada um do seu jeito. Aquela composição durou pouco mais que o tempo do cigarro dela. Mas foi única e irreprodutível. Houve um término que só era um fim de presença física. Ela continuou sentada. Como se fugisse discretamente de alguém o menino se levanta. De repente ele some do vidro, fica só ela, imóvel e acompanhada só por cada fumaça que saia de sua boca. Mas ele reaparece. Passa na frente da mulher do cigarro e some de novo. Ela fica alguns segundos com a bituca na mão, ainda de pernas cruzadas, olhando fixamente para qualquer ponto. Em direção contrária à do menino ela se levanta e sai de onde posso vê-la. A minha tela fica sem meus personagens queridos e intrigantes. Só vejo o banco largo agora, às vezes alguém passa na frente dele. Pra mim o silêncio instigante. Qualquer justificativa abominaria a beleza do que vi.



segunda-feira, 14 de maio de 2012

Cena 2: O algodão-doce tucumano.

Numa tarde de sol e de ânsia fui passear no Parque Avellaneda que tem perto da casa onde moro em San Miguel de Tucumán. E lá tinha um parquinho de diversões cheio de cores pra ver e comer. Muitas crianças, muitas famílias. Um ambiente agradável e alegre. Que me deixou leve. Nesse dia eu até brinquei num balanço depois que um amigo da casa apareceu por lá, coisa que não fazia há anos. Aí estava eu olhando mais e tirando menos fotos quando vejo uma mulher fazendo aqueles algodões-doces gigantes que tem aqui. E, apesar da vontade de filmar aquela cena, eu deixei pra memória. E era assim: ela de costas pra rua e de frente pro parque. Uma menina de uns 20 ou 21 anos que embalava a espuma rosa de açúcar. E a mulher simplesmente rodava seu braço em movimentos circulares fazendo brotar no palitinho o paladar infantil pros olhos verem e avisarem a vontade que pula na boca com aspecto de saliva. E eu fiquei ali. Parada e olhando. Em pé, assistindo, com lábios sorridentes e olhos emocionados.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Mostrar ícones ocultos.

Solucionar problema. 

Detectando problemas................................ 

Aguardando resolução de problemas......................... 

Seu problema foi identificado. 

Seu problema foi identificado. 

Seu problema foi solucionado. 

Aguardando resolução de problemas.......................................... 

Aguardando resolução de problemas....................................................... 

Seu problema não pode ser solucionado. 

E a opção “tente novamente mais tarde” não tem pra mim.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Plano Improvisado

A menina de cabelo branco e olho preto pegou a mala pesada. Saiu da casa de madeira antes do sol aparecer. A rua longa, reta e cinza tinha apenas pequenas moradias nas margens do asfalto. Carros não havia naquele lugar. Apenas patinetes, mas ela ia a pé e silenciosa. Os olhos saltados da garota branquela tinham um foco preciso. No final da rua havia um terreno com mato seco que dava para os fundos de um lugar. Difícil acesso. Mato tão seco quanto o aspecto das folhas avermelhadas e escuras que caíram das árvores aparentemente mortas. Para não chegar lá pelas portas da frente era preciso atravessar o aglomerado de plantas velhas altas. Como é comum que as pessoas busquem a entrada formal e mais fácil, alcançar o mato só era possível depois de descer um enorme barranco e ninguém se preocupava com isso. O tempo estava úmido. Ah, sim. O tempo estava úmido. Então se você criou a imagem de uma rua seca pense agora que ela está com vestígios de chuva que caiu na madrugada que ainda não acabou. 

O barranco estava escorregadio e o peso da mala atrapalhava o equilíbrio. Primeiro a mala, depois a menina; mala para frente, garota por último, menina adiante, mala atrasada. Com esse revezamento o caminho era menos perigoso. O sol já queria surgir, mas as nuvens não o deixavam ver o que garota quer fazer. Quanto mais íngreme ficava o morro mais improvável era achar firmeza para pousar a mala. A menina agora estava adiante do objeto marrom que, de repente, se desprendeu do paredão e caiu por cima dela. A pancada na cabeça provocou um desmaio imediato que as fizeram rolar, a mala e a garota, direto para o pé do morro. 

O menino estava muito magro. Desgastado com o cuidado que precisou ter com a irmã enferma. Uma doença sem nome e sem cura que os tirou da fazenda rumo àquela cidadela e com suas economias acabou. A irmã morreu. Ele não chorou, o que não significa que não sofreu, sofre. Sem dinheiro para o velório, o jeito foi resgatar o corpo da irmã às escondidas no hospital e guarda-lo em segredo até conseguir enterrá-lo. Dormia ao lado do corpo de sua irmã para descansar do esforço que foi cavar metade da cova em barro lamacento. Descansava ao lado de sua irmã morta quando uma barulheira alta de leveza e outra de coisa dura o fizeram se assustar. Só quando o silêncio veio outra vez é que percebeu como sua respiração ficou ofegante. Sentindo as batidas do coração nos lábios ele foi, paulatinamente, tentar entender o que se passara. Os passos calmos não condiziam com o medo que quase o dominara. Quase. Após vencer o mato se deparou com uma menina desmaiada. A menina desmaiada. A dos cabelos brancos. A menina dos cabelos brancos e olhos negros que carregava uma mala marrom pesada. Ele a pegou no colo, levou-a para seu abrigo improvisado numa espécie de guarita abandonada e tentou acordá-la. Fora os sinais vitais que funcionavam bem nada mais indicava vida ali. 

Ele se afastou para olhar. O corpo da irmã morta e uma estranha desconhecida desmaiada. Lado a lado. As duas garotas compartilhavam a incógnita da vida e da morte. Lado a lado. Elas não se conheciam e nem se falavam. Mas a proximidade com o fim as tornava semelhantes. Elas se comunicavam e ele não entendia aquela conversa, ele não poderia entender porque nunca morreu, nunca dormiu por anos e nem sequer já desmaiou. Pra ele a morte era o fim, o sono profundo era o nada e o desmaio era a dúvida entre esses dois caminhos. Para elas, a morte era uma possibilidade comum e nem um pouco espantosa, dormir por anos era o ápice da dor e o desmaio era a falta de decisão. Nisso ele acertou. 

Depois da boquiaberta falta de reação ele se lembrou da mala da menina desconhecida. Voltou onde tinha encontrado, o corpo?, ele pensou se era assim que deveria nominar a carne da garota de olhos escuros. Abriu a mala mais por interesse em encontrar pistas sobre sua nova companhia adormecida do que por curiosidade. Lá dentro tinha um saco grosso preto e uma folha amarelada dobrada por cima dele. O desenho era de um mapa. Um mapa do lugar onde eles estavam agora. Um “X” marcava o que deveria ser a localidade exata de, do... mas aqui só tem..., ele pensou. Pegou a mala e saiu. Dessa vez a passadas mais largas, em direção aos dois corpos femininos que tinham quase a mesma idade do corpo dele. As duas continuavam dormindo. Como se minha irmã pudesse acordar. 

As nuvens não deixavam o sol ver o que menino fazia, mas não conseguiam esconder sua luminosidade. O garoto seguiu guiado pela obscura claridade do céu e pelas coordenadas do mapa. Dentre tantos túmulos ele parou diante de um caixão que ainda não tinha sido enterrado. O cemitério era imenso. Estranho que numa cidade pequena morra tanta gente, mas é que ali as covas começaram a ser cavadas muito tempo antes. Algumas lápides eram inteiramente descascadas não fosse pelas fotos que permaneceram intactas atrás dos vidros. Os olhos de muita gente morta o observavam curiosos, pois nunca ninguém chegara sozinho pra um enterro sozinho. De pé como uma estátua ele ficou até sentir o vento gelado entrar pelos buraquinhos de sua blusa de lã. Sem entender o que tinha acontecido ou o que estava para acontecer ele retomou a mala. Abriu o saco grosso preto e além de uma pá, havia um ferro envergado na ponta que ele tirou dali. Sem pensar muito, mas pensando que não sabia se deveria fazer o que estava fazendo ele utilizou a ponta torta para abrir o caixão. E foi o que fez. Enquanto a testa molhada denunciava um esforço perigoso, os olhos das fotografias estavam mais esbugalhados do que estiveram no momento de suas mortes. 

Um corpo. Um corpo de menino na mesma idade do corpo dele. Se sua irmã e esse rapaz já não podiam ser salvos, tomara que a menina do cabelo branco desperte, pensou. Ficou ali parado. O caixão não era muito grande, mas o tamanho parecia suficiente para dois jovens quase da mesma idade. Se havia um corpo dentro de um caixão é porque haverá um velório. Precisava correr. Quando se virou para buscar a irmã morta viu que a menina de cabelos brancos tinha também olhos pretos enormes que se aproximavam ágeis. As jabuticabas olharam para ele sem condenar o ato ou afagar a cara assustada. Havia algo mais na mala pesada que ele não percebeu. A menina tirou uma caixa pequena da mala e da caixa um relógio. Grande, com um cordão que ficou largo no pescoço dela. A garota olhava apreensiva para o menino do caixão. O tic-tac do relógio no peito dela não parecia ter pressa. Quando os dois ponteiros se encontraram o barulho da hora combinada fez a menina desesperar. Ela começou a agitar o corpo no caixão, a gritar com ele, xingar. O irmão da irmã morta ouviu um tossido que não era nenhum pouco feminino. Os olhos dele e das fotografias demoraram em acreditar, mas o menino do caixão não só tossiu como se levantou. Abraçou a menina dos cabelos brancos que chorava. Ela o ajudou a sair do caixão e quando eles iam fechá-lo novamente o irmão da irmã morta disse espera. Virou as costas e correu. A garota dos olhos negros entendeu e disse ao que ressuscitou para segui-la. Mas o menino não deixou outro carregar sua irmã. Então a dos cabelos brancos e o que quase foi enterrado o seguiram. A que morreu doente tinha o peso de um pássaro. Com doçura seu irmão a deitou na madeira dura. Deu-lhe um beijo e uma lágrima dele ficou com ela. O relógio pendurado no pescoço da outra menina avisou que tinham que agir rápido. Ela afastou o garoto do caixão e com ajuda do que parecia estar morto fechou a tampa da eterna cama. O irmão só assistiu a tudo. Estático. Machucado. Dolorido. 

Os outros dois o pegaram pelo braço. Corriam. Correu com eles sem saber porque, sem saber para onde. Mas foi, afinal, ele era sozinho agora que conseguiu descansar sua irmã. Ele era triste sem o sorriso do seu pequeno pássaro. 

Os três seguiram por caminhos completamente desconhecidos por outros moradores da cidade. Ruas estreitas com asfalto velho os levaram para uma estrada. Caminharam até as nuvens pararem de implicar com o sol porque este também morreu hoje. Foi só em completo escuro novamente que eles conversaram. O plano da menina de cabelos brancos e do que quase foi enterrado não era mais um segredo só dos dois. Era também da que ficou e do que veio junto. O que veio junto soube da fuga, da simulação da morte. Whisky bebido em copo de estanho finge o fim da vida. Faz os outros acreditarem no fim da vida. Só dessa forma poderiam viver numa cidade de bicicletas.

sábado, 5 de maio de 2012

Antes de chegar em casa

Caiu uma gota muito molhada de prédio embolorado na minha camiseta branca. O tecido que fica envolta da parte mais atingida absorve aquela sujeira amarelada. A luz do sinal vermelho ilumina minha cara de pesar olhando praquela sujeira. Uma camiseta tão branca. Que era tão branca. Agora é uma camiseta menos branca. Borrada de gota molhada do prédio embolorado velho. Borrada de gota molhada do prédio embolorado velho onde no sétimo andar mora uma também velha e embolorada senhora que chora a morte do seu gato. Camiseta branca suja de prédio embolorado com lágrima de velha também embolorada. No mesmo andar uma menina descobre o seu primeiro orgasmo. Sozinha. Três andares acima num banheiro fedido um homem embriagado caga o seu arrependimento que escorre pelos canos do prédio embolorado velho. Camiseta suja de prédio embolorado velho, de velha embolorada, de secreção de primeiro orgasmo, de merda de bêbado. O porteiro deixou restos de marmita da noite retrasada na calçada. Com a chuva que fez a comida meio apodrecida escorre no chão e muda seu caminho retilíneo quando encontra meus pés. Apodrecido também está o corpo do velho que sempre morou sozinho. Seu silêncio o fez invisível no prédio embolorado. Minha camiseta manchada de prédio sujo de velha embolorada de meleca do primeiro orgasmo de fedor da bosta do homem e de bicho comendo um silencioso cadáver queria ser invisível também. Mas não é. E eu olho com pesar pra ela.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Metalinguagem do amor

Nem sei como vou te contar
que aquele dia foi proposital
Nem sei se devo confessar
que muitas vezes te odiei
e que rasguei
a carta que não entreguei
Pensei em falar da tua
foto na minha carteira
pensei em contar do teu
amuleto no meu peito

As cores daquelas flores
Esquecidas na estante da sala
As dores dos meus amores
Perdidos em dias covardes
Os rumores dos bastidores
Antes do que ensaiei dizer
Os piores dos meus pudores
Que nunca tive, na verdade

Engole agora o meu
vômito de letrinhas
lambe
o suor das minhas mãos
aquece meu arrepio contínuo
me busca um copo de

calmante
e, por favor
alguma dose estimulante
porque agora eu confessei
entreguei a carta que rasguei
e contei do que é teu no meu

As cores daquelas flores
Esquecidas na estante da sala
As dores dos meus amores
Perdidos em dias covardes
Os rumores dos bastidores
Antes do que ensaiei dizer
Os piores dos meus pudores
Que nunca tive, na verdade