segunda-feira, 30 de abril de 2012

Infância ou férias

Eu topo uma tarde feliz. Um carinho nas costas e um cafuné. Eu topo um sorriso que enruga os olhos e um abraço que alivia. Uma música que me acalme e uma bebida que me amoleça. Eu topo fugir pra não ser jogada na piscina, mas me atirar nela depois. Topo um terraço com vista pra lua. Topo almoço com toda a família. Tarde refrescante numa rede confortável. Flor que cai bem no meu nariz. Chuva bonita. Mãos lambuzadas de açúcar e cara de chocolate. Topo trepar na árvore. Brincar de esconder. Topo cócegas que roubam o ar. Cachorro que me segue até a padaria. Cheiro e brisa que me fazem parar.

Felicidades Espontâneas

Aquilo que só você e mais alguém viu e que é impossível parar de rir. Assim como sorri singelamente a garota no ônibus que provavelmente se lembrou de alguma coisa engraçada. A flor que cai bem no meu nariz, como disse num outro texto. Alguém que parecia ter me esquecido. E de repente uma corrida em volta da quadra. O cheiro de praia que às vezes sinto na cidade. A brisa fresca que vem no fim da tarde invadindo os carros das pessoas que ousam abaixar os vidros. Um bombom esquecido propositalmente na mesa de alguém querido. O oi que recebo de quem nunca vi. E de repente, um carro que carrega um cavalo no porta-malas. O abraço apertado do filho da minha amiga. A baderna do almoço feito em casa pros amigos. Uma cerveja na geladeira que você achou que não existia! E de repente balançar as pernas no terraço do prédio mais alto. Um tropeço que te faz olhar para o chão e ver uma mancha fazendo careta pra você. Um espirro que te faz olhar pra cima e ver que o céu não está nublado hoje. E de repente um cara andando de sunga numa bicicleta. E de repente, atores na rua. E de repente três pessoas vestidas inteiras de vermelho. E, de repente, um abraço que eu não esperava.

sábado, 28 de abril de 2012

Memória dos dedos

Dos lábios macios. Das mãos grandes. Do cabelo liso. Da pele suave. Da barba por fazer. O muito quente. Estou provando corpos. O leve. O que me treme. Que me extasia. O dolorido. O que amolece. Estou provando carinhos. Do malicioso. Do apaixonado. Do medroso. Estou provando sorrisos. Íntimo. Desinteressado. Envolvido. O que anestesia. O que aperta. Que ama. Que se esconde. Estou provando sexos. O que cala. O que fala demais. Tímido. Exagerado. Afobado. O tranquilo. O perspicaz. Estou provando pessoas.

Costura

Estou com teu cheiro no meu corpo 
e com vontade tua na minha boca 
Minha pele ainda se arrepia quando 
se lembra da tua 
Meus seios procuram tuas mãos com a 
mesma saudade que meus olhos investigam os teus 
investigam os teus 
Meu pescoço quer tua língua 
e minha nunca, sua respiração 
Pontas dos dedos que 
me arrepiam as costelas 
pontas dos dedos que 
descobrem teu corpo inteiro 
descobrem teu corpo inteiro 
Busco tua temperatura do mesmo jeito 
que meu tato busca o que está 
por baixo da tua roupa 
aprendo tua pela 
aprendo teu jeito 
Quero teu prazer com o meu 
como quero o que pensas

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Osso capacitado

Corpo magro e pele branca. Dedilho as costelas, aperto os braços. Ulna, rádio. Aperto as pernas. Tíbia, fíbula. Falange, falanginha, falangeta. Aperto. Clavícula, escápula. Vértebra por vértebra. Língua e pele. Maxilar, mandíbula. Lambe. Tato e osso. Posso? Corpo poroso. Olhos e boca. Corpo gelatinoso. Osso nasal, fissura supra orbital, osso lacrimal. Choro confidencial. Outra vez. Processo frontal do maxilar. Processo alveolar do maxilar, do maxilar. Maxilar. Maxi. Mais. Esterno. Articulação do quadril. Esterno. Interno. Esterno. Interno. Carpo. Metacarpo. Tarso. Metatarso. Metamorfose de mim.


(des) conhecendo

O que era aquilo? O que era aquilo ela não sabia. O que tinha feito não era o que geralmente faria. Mas nós não somos generalizações. Na maioria das vezes somos o detalhe escondido, a reação inesperada, um repentino susto pra nós mesmos. Um eu dentro de mim que eu desconhecia. Um eu dentro de mim estranho a mim. Fiz o que nunca fiz. Fiz o que não faria, mas fiz. Faço. Farei novamente, muito provavelmente, farei novamente. Sem nunca parar de pensar. Talvez fosse mais saudável pensar menos. Difícil isso. Provar. Descobrir. Sentir. Se permitir. Nunca vou parar até saber de mim, até saber quem eu sou. Entenderam? Nunca vou parar.

domingo, 15 de abril de 2012

Último capítulo


Quando você chega de repente no meu quarto porque já tem as chaves da minha casa eu pouso o livro aberto na minha coxa esquerda pra não desmarcar o conto. Pernas levemente abertas pra não amassar as páginas ou não deixar o livro cair. E de alguma forma isso te excita. A mochila cai rápida no chão como se a gravidade para ela fosse maior. Você para e fica me olhando. Pergunto que foi e você diz nada continue o que estava fazendo. Então sorrio desconfiada e te olho de lado enquanto pego o livro de mim mesma. A leitura estava boa e eu prossigo. Até esqueço que você continua aí me olhando com sorriso apaixonado e olhar de tesão. 
"sempre carregava no bolso. Gasto pelo tempo, mas muito mais pelo uso frequente e viciado. Ela o abre e os traços propositalmente borrados, mas artisticamente feitos, denunciam um garoto que vive e sente o tempo todo. O furor em registrar o que pensava ou o que via era tanto que mesmo com páginas grossas havia tinta vazada na folha seguinte, na folha anterior. Tantas fotografias da dor de viver belamente feitas com tinta preta. Em meio a corpos derretidos e comprometidos, olhos ocos, rostos repulsivos, mãos mortas, cicatrizes cortadas e vontades anuladas, ela encontra um retrato seu. Um retrato seu feito por ele. Teria ele esquecido esse caderno velho de propósito? Justamente pra que eu me veja desenhada tão bonita, tão sorridente e tão sinceramente? E ao folhear essas páginas eu descubro tantas outras ilustrações de mim. Eu deitada com a barriga no colchão e as pernas no ar, eu sentada na cadeira com os pés descalços, eu enrolada na toalha, eu nua passando creme no meu corpo, eu dormindo. Teria ele esquecido esse trapo nojento cheio de rabiscos toscos de propósito? Propositalmente pra que eu veja que, apesar de não conseguir estar comigo agora, ele me ama? Pra que eu tenha certeza de que aquelas palavras ofensivas que não combinavam com sua boca eram mesmo uma pura bobagem ensaiada de quem prefere fingir o ódio a confessar a confusão e mentir pra me fazer esquecer?” 
Minha leitura é interrompida por suas mãos grossas sem que eu te percebesse chegando. O jeito como eu engoli o ar de boca aberta e me desprendi da cadeira num susto rápido; de alguma forma isso te excita mais. E ao sentir teus dedos nas minhas coxas eu penso no garoto que fugiu covardemente. Me entrego a esse pensamento, mas me entrego também à sensação delicada que sua mão compõe com a minha pele. Ela, dormente, se acende com seu carinho sensual que me instiga a te querer mais uma vez. E nos encontramos com os olhos e com os corpos. Estes tão juntos e desejados que meu prazer escapa em lágrimas. Rimos disso tudo sem nos desprendermos. Intensidade compartilhada que explode. 


E agora não sei se vou fugir covardemente como o garoto do livro esquecendo alguma pista que diz que te amo.

A Maior Vontade

Esses dois copos cheios de bebida. O meu e o seu. Este banco, esse banco. Sua respiração e a minha. Seu cheiro que me amolece e me arrepia de desejo. Esses olhos. Ah, esses olhos!
Esses dois copos meio cheios, meio vazios de bebida. O meu e o seu. Este banco. Esse banco. Sua respiração ofegante. O cheiro de whisky que vem da sua boca e me embebeda.
Esses dois copos vazios de bebida. O meu e o seu. Este banco, esse banco. Esse agora tão perto deste. Seus olhos semi abertos e essa boca ousada que me faz querer ir com você.
Nós dois. O tapete bonito do restaurante do hotel. O elevador. O tapete bonito o corredor do hotel. A porta do quarto. Eu e você. Essa cama tão desejada. Eu e você. Este travesseiro. Esse travesseiro. O meu e o seu. Se já não estivéssemos roncando eu até que desligaria a luz do abajur.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Um lugar

Num centro sujo esteticamente cinematográfico pra quem vai escrever um texto como esse o cheiro de cachaça impregnado na roupa alheia de dois dias atrás se mistura com o bafo quente de cigarro que sinto na boca de quem passa. Multidões socadas se permitem encostar generosamente nos corpos vizinhos para conseguir um lugar no ônibus ou pelo menos nele entrar. A igreja em reforma abriga os ratos que logo vão migrar para o boteco ao lado. As calçadas desiguais enganam os pedestres que sentem arder suas narinas com o fedor invasivo da urina que algum bêbado ou até um morador de rua deixou cair pesadamente ali, aqui. O cheiro agudo piora quando uma velha exala seu perfume doce de quem está pronta para ir ao bingo. As estátuas das praças já não se enjoam com o odor deixado pelas pombas em suas cabeças cor de bronze carcomido e assistem o primeiro beijo tímido de um casal; e também o fim da história de outros dois. Elas imaginam o que aconteceu com o menino que levou bronca do pai e se comovem com o choro daquela mulher. Aquela que ontem mesmo passou por ali entupida de craque berrando por causa de um homem. Os prédios altos, sujos e escuros ao competirem com outras arquiteturas escondem o último sexo sem consentimento ocorrido na cidade. Eles abrigam os sujeitos expulsos de uma rua em revitalização. A felicidade boba de um estudante sortudo que ganhou cachaça em dose tripla do dono do bar se confunde com a amargura de um recém desempregado que acaba de chegar para com o jovem dividir o balcão. A música pesada de um bar underground encontra a reverberação do samba de raiz que diverte mais alguns na mesma rua. Eu canto o que eu vejo. E eu vejo diversidade. Eu escrevo o cheiro que entope meu nariz. E eu respiro putrefação. Eu falo do que eu sinto e isso não é tão singular assim. Medo, interesse, pavor, curiosidade, repulsa e vontade. Um turbilhão numa caminhada. Uma imensidão num minuto. Diversas magnitudes num lugar.

Do-ente

Não é osso, rim ou fígado
Não é doença, paralisia ou infecção
Não aparece em exames, radiografias ou tomografias
Não é de causa biológica, do corpo ou do sangue
Não, não é
É da mente, é do ente
Um psicossomático que me derruba
bate
joga
definha
e define