Estava na cama já fazia dezenove horas seguidas. Vontade de levantar? Não tanto assim. Mas ainda havia algo saudável naquele corpo e naquela mente. Ela ainda se prezava de alguma forma. Ela não se abandonou. A bexiga não conseguia mais guardar o mijo que saiu depressa, quase antes dela conseguir abaixar a calcinha fedida e se sentar no vaso. Quantos dias sem banho? Ela nunca contou. Tempo pra ela é outra coisa.
E ela pensou que tem vezes que o dia seguinte é exatamente o que não precisamos. Ele amanhece só pra nos lembrar de que mais uma vez não deixamos aquela frase escapar, quisemos e não fizemos. O dia seguinte nos lembra de que depois de tocar a campainha, a coragem faltou, fugimos. O dia seguinte lembrou que a vontade ainda é a mesma: amar-te mais uma vez e, quem sabe, por muitas vezes mais. O dia seguinte lembrou que a vontade ainda é a mesma: Abraçar-te, meu querido. E te ninar, meu amor.
Semanas, semanas, semanas e semanas dentro do quarto. O apartamento estava repleto de copos sujos, guardanapos jogados no chão. Cheiro forte de cigarro com whisky vagabundo. Havia tanta bebida naqueles apertados metros quadrados. Tanta sujeira. Fedor de depressão, de angústia. Uma cena de descuido próprio.
Umas dez ou doze mensagens na secretária eletrônica. “Oi! Que saudade de vocês! Eu chego no Brasil daqui umas duas semanas. Eu ligo, beijo. Olá, quer ganhar descontos de 50% com o se... Consegui transferir seu pai pro HC daí. Filha, eu to indo te ver”.
Teve que acender a luz do banheiro porque ainda era madrugada. Quando ela se viu no espelho, se assustou. Mas os olhos fundos faziam jus à boca com gosto de remédio, ao estômago cheio de café e aos cinzeiros espalhados repletos de bitucas de cigarros. Apesar disso, não se reconheceu.
Tirou a roupa suja de vinho e com manchas de café. Fazia frio, mas quis uma ducha gelada. Ela já havia se esquecido do som do chuveiro. Entrou com o corpo de uma vez só. Ela berrava, a água doía até nos seus ossos finos. Ela berrava e batia no próprio rosto. Barulho de água caindo. Mais berros. Ardidos estalos de mão fria que se chocava com o rosto branco machucado. Ela berrava.
Tremendo desligou a ducha. Subiu molhada na patente agora molhada. Alcançou o chuveiro. Água quente. Ligou o chuveiro mais uma vez e se aqueceu embaixo dele. O berro cedeu lugar a um gemido de alívio. Ela começou a chorar. Ficou mais uns quinze minutos ali, a água escorrendo pelo ralo junto com suas lágrimas de dor.
Esqueceu a toalha como se esquecera qual foi a última vez que quis falar com alguém. O corpo encharcado escorreu água pelo piso frio do banheiro, pelo corredor e pelo quarto. Ela pegou uma toalha felpuda e embolorada e se secou rapidamente. Fazia muito frio. A casa estava fria. Aquele lugar não a acolhia mais.
Pôs uma roupa bonita, se perfumou, colocou aqueles brincos, pegou aquele livro de histórias e voltou pra sala. Acendeu mais um cigarro. Encheu o copo novamente. Dessa vez, conhaque. Conhaque com café. Um a um, ela recolheu os porta-retratos que estavam quebrados no chão e os que estavam de costas pra ela em cima da estante. O choro incontido incontrolável veio sem perguntar se podia. E eu me enganei quando disse no começo que ela se levantou por se prezar de alguma forma. Ela se levantou, se banhou e se arrumou para encontra-los. Ali. Na sala. Quebrados no chão. Intensos na memória. Bebeu mais um gole. Olhando as fotos agora apoiadas no seu corpo ela tragou rapidamente. Os olhou com carinho. Tirou os cacos de vidro de cima deles, afagou seus rostos no papel.
Limpou o rosto molhado, fingiu felicidade e “era uma vez...”... ... ... ... ... ...
A dor era assim reticente sem fim. Ela não tinha mais o que chorar. As lágrimas secaram de tanto que caíram. Permaneceu sentada no chão com as lembranças ao redor.
Ouviu barulho de chave na porta e permaneceu imóvel como estava. O olhar longe, o sentimento doído. Era sua mãe. Ela pôs a filha no colo que continuou calada. Mesmo quando recebeu um beijo na testa e um aperto caloroso. Depois de alguns minutos, de repente, como se só agora sua mãe tivesse chegado ela gemeu enquanto o choro voltava e ela a abraçava: “mãe, ai mãe”.
E as duas ficaram ali, abraçadas, agarradas. Assim como mãe agarra cria e cria agarra mãe. Pela janela grande elas ficaram olhando a bastante chuva que caia fina em paralelo.