domingo, 27 de janeiro de 2013

Saudade

Estava na cama já fazia dezenove horas seguidas. Vontade de levantar? Não tanto assim. Mas ainda havia algo saudável naquele corpo e naquela mente. Ela ainda se prezava de alguma forma. Ela não se abandonou. A bexiga não conseguia mais guardar o mijo que saiu depressa, quase antes dela conseguir abaixar a calcinha fedida e se sentar no vaso. Quantos dias sem banho? Ela nunca contou. Tempo pra ela é outra coisa. 
E ela pensou que tem vezes que o dia seguinte é exatamente o que não precisamos. Ele amanhece só pra nos lembrar de que mais uma vez não deixamos aquela frase escapar, quisemos e não fizemos. O dia seguinte nos lembra de que depois de tocar a campainha, a coragem faltou, fugimos. O dia seguinte lembrou que a vontade ainda é a mesma: amar-te mais uma vez e, quem sabe, por muitas vezes mais. O dia seguinte lembrou que a vontade ainda é a mesma: Abraçar-te, meu querido. E te ninar, meu amor. 
Semanas, semanas, semanas e semanas dentro do quarto. O apartamento estava repleto de copos sujos, guardanapos jogados no chão. Cheiro forte de cigarro com whisky vagabundo. Havia tanta bebida naqueles apertados metros quadrados. Tanta sujeira. Fedor de depressão, de angústia. Uma cena de descuido próprio. 
Umas dez ou doze mensagens na secretária eletrônica. “Oi! Que saudade de vocês! Eu chego no Brasil daqui umas duas semanas. Eu ligo, beijo. Olá, quer ganhar descontos de 50% com o se... Consegui transferir seu pai pro HC daí. Filha, eu to indo te ver”. 
Teve que acender a luz do banheiro porque ainda era madrugada. Quando ela se viu no espelho, se assustou. Mas os olhos fundos faziam jus à boca com gosto de remédio, ao estômago cheio de café e aos cinzeiros espalhados repletos de bitucas de cigarros. Apesar disso, não se reconheceu. 
Tirou a roupa suja de vinho e com manchas de café. Fazia frio, mas quis uma ducha gelada. Ela já havia se esquecido do som do chuveiro. Entrou com o corpo de uma vez só. Ela berrava, a água doía até nos seus ossos finos. Ela berrava e batia no próprio rosto. Barulho de água caindo. Mais berros. Ardidos estalos de mão fria que se chocava com o rosto branco machucado. Ela berrava. 
Tremendo desligou a ducha. Subiu molhada na patente agora molhada. Alcançou o chuveiro. Água quente. Ligou o chuveiro mais uma vez e se aqueceu embaixo dele. O berro cedeu lugar a um gemido de alívio. Ela começou a chorar. Ficou mais uns quinze minutos ali, a água escorrendo pelo ralo junto com suas lágrimas de dor. 
Esqueceu a toalha como se esquecera qual foi a última vez que quis falar com alguém. O corpo encharcado escorreu água pelo piso frio do banheiro, pelo corredor e pelo quarto. Ela pegou uma toalha felpuda e embolorada e se secou rapidamente. Fazia muito frio. A casa estava fria. Aquele lugar não a acolhia mais. 
Pôs uma roupa bonita, se perfumou, colocou aqueles brincos, pegou aquele livro de histórias e voltou pra sala. Acendeu mais um cigarro. Encheu o copo novamente. Dessa vez, conhaque. Conhaque com café. Um a um, ela recolheu os porta-retratos que estavam quebrados no chão e os que estavam de costas pra ela em cima da estante. O choro incontido incontrolável veio sem perguntar se podia. E eu me enganei quando disse no começo que ela se levantou por se prezar de alguma forma. Ela se levantou, se banhou e se arrumou para encontra-los. Ali. Na sala. Quebrados no chão. Intensos na memória. Bebeu mais um gole. Olhando as fotos agora apoiadas no seu corpo ela tragou rapidamente. Os olhou com carinho. Tirou os cacos de vidro de cima deles, afagou seus rostos no papel. 
Limpou o rosto molhado, fingiu felicidade e “era uma vez...”... ... ... ... ... ... 

A dor era assim reticente sem fim. Ela não tinha mais o que chorar. As lágrimas secaram de tanto que caíram. Permaneceu sentada no chão com as lembranças ao redor. 
Ouviu barulho de chave na porta e permaneceu imóvel como estava. O olhar longe, o sentimento doído. Era sua mãe. Ela pôs a filha no colo que continuou calada. Mesmo quando recebeu um beijo na testa e um aperto caloroso. Depois de alguns minutos, de repente, como se só agora sua mãe tivesse chegado ela gemeu enquanto o choro voltava e ela a abraçava: “mãe, ai mãe”. 
E as duas ficaram ali, abraçadas, agarradas. Assim como mãe agarra cria e cria agarra mãe. Pela janela grande elas ficaram olhando a bastante chuva que caia fina em paralelo.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Fermento

Quarta-feira. Noite. Céu cinza claro enganando os despercebidos que não se atentaram para a hora que já era tarde. Noite. Céu cinza claro. Os dois sentados na mesa da cozinha de azulejos-losangos-azuis-pequenos. Cerveja pra acompanhar a conversa. 

- Faz tempo que eu não bebo 

- Não acredito. 

Ele esvazia o copo. 

- Faz tempo que eu não bebo com alguém. 

- Ah, sim. Faz tempo também que eu não bebo acompanhada. Só com minhas amigas mesmo. 

Ele diz que tem bebido bastante em casa. Finge que acredita que o álcool ajuda em alguma coisa. Ela sabe que ele finge. Ela divaga que no começo sim, a solidão é mais rasa quando bebemos. Mas e quem bebe sozinho? ele pergunta como que procurando uma explicação feminina pro seu repetido ritual diário. Pega de surpresa, ela pensa e 

- O que você quer ver no fundo do copo? 

- É uma boa pergunta. Difícil responder. Na verdade ele não quis arriscar dizer. Não quis responder pra si mesmo o que ousava saber. 

- E você? O que vê no fundo do copo? 

Ela se estatua por um tempo. Parada, reflete. 



- Não. Não vejo nada. Porque ainda tá transbordando. E vaza em todo chão que caminho. 

E então ele entendeu porque os pés dela estavam sempre molhados, o corredor do apartamento úmido e a cozinha quase inundada. Preferia morar em bairros vazios porque os vizinhos não suportavam a água vazada para a casa deles. Uma vida ensopada de derramamentos do âmago. 

Ela disse quando ele reparava nos seus pés enrugados meu coração também está. 

Ele a olhou assustado. Olhou nos olhos fortes que se misturavam com a expressão triste que ela não se preocupou em esconder. Ela lhe mostrou uma radiografia de seu coração. Estava murcho. Ele pensou estar falando com uma alguém enterrado. Ela, então, colocou a mão de dedos finos e longos no seu peito. Nunca um coração bateu tão forte, pensaram juntos. E silenciaram. Olharam-se. Sorriram. 

Era madrugada e cada um foi dormir com sua dor. O som de passos se esfregando em poças d’água o acompanhou até a porta. Ela repousou em seu rio. Ele continuou cavando.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Pela minha boceta sai o sangue quente vermelho do meu coração. Um grito trancado na boca aberta. O vermelho coalhado escorrendo pelas minhas pernas rasga minha pele, estoura minhas veias, perfura meus poros. E eu. E eu me devaneio, me desanuvio. Fico seca. Osso. Caroço de mim.

O que foge do meu âmago encharca minha cama, inunda o chão do quarto e sobe para o teto pintando as paredes de vermelho-marrom. De cor-de-dor.

Quem veio me resgatar se machucou com a minha angústia e chorou cacos de vidro. Quem com medo de se aproximar e só espiou de longe meus olhos tristes abertos suou espinhos de rosas. Quem contou minha história vomitou amarelo pastoso. Quem ouviu ouve agora pro resto da vida meu choro agudo. Que não morreu. Que não parou. Que não acabou. Que não morreu. Que não parou. Que não acabou. ... ...