segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Pode-se não falar com o vigilante

Foto: Paula Arenhart


Vai pelas ruas observando cada milímetro. Um espirro segurado, uma pessoa tentando encontrar a porta certa no banco, um que foge do outro, a sandália que rasgou, o tropeço, a lambida no sorvete, o pombo comendo pedra, a tatuagem errada, as havaianas, o carinho nos olhares, a que passeia sorrindo sozinha, o grito escandaloso da criança, o desempregado que conta moedas, um homem que segura o choro sentado sozinho, um homem excitado sentado sozinho, um homem sentado sozinho.

Placas coordenam a valsa descompassada: não entre na loja com sorvete, vire à esquerda, atravesse a rua em 27 segundos, exclusivo motos, exclusivo ônibus, óculos importados exclusivos, praça zacarias, cuidado cliente quebrou pagou, não pise na grama, 70% de desconto, para ser atendido aperte a campainha, diga não às drogas, você tem um minuto?, devolvo amor em uma semana, você conhece a deus-mãe?, aqui dentistas, pode-se não falar com o vigilante.

O cara que sempre toca violino ali, o casal que sempre canta com a sanfona, o fôlego, o oil man, a chuva, os doces na vitrine, a fila pro elevador, o anúncio aluga-se, o atrasado, o apressado, o desavisado, a morte da bezerra, a cerveja gelada escorrendo por dentro da garganta, a fila da padaria, o cafezinho fora de hora, o cachorro passeando com seu dono, os cabelos coloridos, a propaganda, o protetor vencido, os paralelepípedos, a tosse da vaca.

Seu cheiro, uma lembrança, olhos na nuca, um susto, você, a esquina, atravesso. Não olhe para a direita.

Um momento único, porém rodiado, a respiração perceptível, o ontem intervindo no hoje e focado no amanhã. É o hoje mesmo? Sei-lá! É o azar vitorioso, a divisão por zero que soma, o sem nexo com relevância, dependendo onde estar. Não é nem mais e nem a menos, é apenas o tempo, a mesma oportunidade fundante para diversas interpretações alienada ao mais alimentado. A ventoinha girando, o silêncio limpando, o passarinho cantando e o tempo passando - o meu e o seu.

Sorria, você está sendo filmado.

O cheiro da pipoqueira, os incontáveis chicletes grudados no asfalto, sacos transbordando lixo,o amontoado fora da faixa.

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