domingo, 9 de junho de 2013

Dois pontos

- Você nunca pegou ônibus, né?
- Não.
Quer dizer, já. Mas não aqui.
- Pra onde você quer ir?
- Pro começo da estrada.
Quer dizer, pra rodoviária.
- Eu tô com um tempo livre. Vem que te acompanho.
- Da pra ir caminhando?
- Não é muito perto. Mas também não é muito longe.
Aquilo foi um sim. Ela entendeu e logo seguiu uma direção. Era a direção errada, mas ele preferiu ir pela empolgação dela. Depois arrumava a ordem do caminho.
Exercício difícil não pensar que ele estava com uma estranha e como assim? Eu nunca imaginei tamanha proximidade com quem nunca vi. Mas optou por tentar desativar o superego e é isso aí. Concluiu que o nó entre seus quase dois metros de altura e a delicadeza do pequeno tamanho da desconhecida estava levemente frouxo, mas feito. Afinal, quem corre maior perigo ali é ela. Eu sei que cidade é essa e por onde ir.
Mas será que sabia?, pensou eu que acabei de inventar essas duas pessoas. Até parece que a baixinha compartilha minha hipótese, já que
- Por que você não relaxa? Acho que você tá tenso.
- É.

Pausa. Pausa para ele desanuviar suas ideias aprisionantes e perceber que para ela é inevitável olhar pra cima. Os topos dos prédios, o cara escovando os dentes na janela, as roupas ainda esperando o sol, as tags, a planta que escapou do concreto, o edifício aceso da empresa que nunca para de trabalhar, a música sanfonada da sociedade portuguesa, aula de dança de salão, a luz colorida-brega da boate de terça-feira-quase-noite, a coruja no chão.
Pausa para ele se hipnotizar com o novo ao seu lado e, com o novo, se descuidar e tirar as mãos do bolso, escancarando que elas estavam roxas. Roxo escuro. Roxo pancada. Roxo hematoma.
- O que aconteceu?, recebeu a pergunta assustada.
O roxo hematoma das mãos saiu do peito, do preso que fugiu do coração. Foi pra onde todo mundo vê porque sua boca não diz e sua voz cala. A cor era tão intensa que abandonei por instantes a taça de vinho. O roxo hematoma das mãos saiu do peito, do plexo e pulou pros dedos que são obrigados a se relacionar. Ela agarrou uma de suas feridas e a segurou como quem segura um tesouro.
- Que horas sai seu ônibus?
- Não sei. Não tenho um ônibus pra pegar.
- Mas você não tá indo pra rodoviária?
- Sim, mas ainda não sei pra onde vou. Sei pra onde quero ir, mas não sei pra onde vou.
- Posso então te levar pra um lugar que gosto muito?
Aos sons de tijolos esbarrados e risadas algumas eles pularam o muro.
- Eu nunca invadi qualquer lugar antes.
Era a vez de ela mostrar uma franqueza. Subiram vários andares no escuro tomando cuidado com a fenda do elevador que nunca foi posto ali. Ela estatuou ao ver a cidade do alto e seu fim no horizonte.
- É bonito aqui. É lindo.
As confidências compartilhadas e os segredos divididos se assustaram com a repentina interrupção. Ele vomitou em meio a uma frase. Vomitou roxo o que não comia há dias. Há tempos seus órgãos não sentiam alívio e seu sangue até se esquecera da sensação tranquila de percorrer as veias sem entraves subjetivos ou existenciais.

- Obrigada pela companhia.
- Obrigado pela sinceridade.
Um abraço tão genuíno e caloroso que senti minha pele amortecer.
- É, acho que seu ônibus está saindo.
- É. Tchau.
Ele se recordou de tudo enquanto caminhava até sua casa e ao abrir a janela da sala desabafou:
- É bonito aqui. É lindo.
Ele, que já havia se habituado à composição daquela arquitetura com o céu, estalou os olhos ao reparar naquela cor que sempre esteve ali. Era uma cor que estava todos os dias, mas não era a cor de todos os dias. Ele até esqueceu o casaco cinza para se embriagar com o calor que o azul forte proporcionava. Os pelos altos de arrepio chegaram a dormir. No mesmo instante em que ela carregou as pálpebras pesadas em direção às sobrancelhas para se perder no céu escuro. No verde rasteiro e silencioso encoberto pela luz redonda e imponente que vinha do céu.
As mãos dele estavam brandas. Os olhos dela choraram doces alegrias saudosas. Eu finalmente respirei até os bronquíolos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário