sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Festa à Fantasia

Fui convidada para uma festa à fantasia. Não sei que personagem escolher. Não quero ir de Branca de Neve porque eu não como maçã. E se comesse, a envenenada, morreria pra sempre. Não nado tão bem para me transformar numa Pequena Sereia e nem quero perder minha voz para ter uma calda flutuante que talvez sangrasse com o sal do mar. Não tenho a paciência de Rapunzel para esperar meus cabelos crescerem e nem bela voz para cantar quando há tédio. Se grandes tranças tivesse as usaria para voar. Correia até o topo mais agudo do morro mais alto que fica mais longe e me deixaria cair. Caiiiir, caiiir. O vento bruto de baixo pra cima me ergueria o vestido de princesa e taparia toda a minha visão. Irritada e em plena queda eu daria um jeito de despregar os botões pra que o vestido de princesa passasse direto por mim, subindo até a minha cabeça pra se perder em alguma árvore quando, depois de quase atingir o topo mais agudo do morro mais alto que fica mais longe, encontrasse a gravidade outra vez. E então, sem vestido pesado de princesa sentiria as aconchegantes cócegas das nuvens, o cheiro das flores nos meus seios e o volume dos pássaros nos meus ouvidos. Com as tranças desfeitas e o perigo do chão se aproximando meus cabelos castanhos, e não loiros como imagino envenenada pelas histórias-Disney enquanto escrevo este trecho, se transformariam numa cama que resguarda meu pouso. Como rede eles se colocariam entre duas árvores para eu respirar ali o fôlego da viagem que é cair do topo mais agudo do morro mais alto que fica mais longe e não morrer.

Fui convidada para uma festa à fantasia e não sei qual personagem escolher. Não quero ir de Bela Adormecida pra não correr o risco de perder a festa e ficar a noite toda em casa. Dizem que a Bela, a outra, gostava de ler. Quem sabe eu não encontro uma Fera na tal festa? De Cinderela não tem como porque eu não tenho madrasta e nem falo com passarinhos, ratinhos e esquilos da floresta. Se falasse procuraria a resposta pra pergunta que me insônia: onde encontro o filete de calma que perdi no caminho da rotina?

Fui convidada para uma festa à fantasia e não sei qual personagem ser. Conversando com uma amiga naquela rua que não passam carros e conversando com a mesma amiga tomando suco de framboesa, a minha amiga que estava comigo na rua onde não passam carros tomando suco de framboesa disse sei lá, não tenho nenhuma ideia de fantasia pra você ir na tal festa à fantasia. Pensei em ir de espiã no momento em que o último gole gelado de framboesa caía no meu estômago quente. Eu vou de espiã nessa festa à fantasia para investigar onde encontro o filete de calma que perdi no caminho da rotina.

Fui convida para uma festa à fantasia e não sei qual chave quebrada. Chave quebrada.

Chave.

Quebrada.

A minha chave está quebrada na porta do apartamento. Eu nem vi isso antes e nem sei o que fazer com isso agora. Eu poderia ligar para um amigo, quem sabe para um chaveiro. Tudo indica que tenho instrumentos físicos e raciocínio mental para tal. Mas não. Eu nem sei como essa chave se quebrou. A minha chave está quebrada na porta do apartamento. Devo ter ficado uns vinte minutos com as costas curvadas reparando na nova rachadura da porta segurando metade da chave na mão. (É que quando respirei mais profundo doeu no pulmão. Acontece. Quando se fica com as costas curvadas por pelo menos uns vinte minutos com metade da chave na mão reparando na nova rachadura, ou na nunca antes reparada, falta ar entre as costelas e elas demoram a se expandir outra vez. Então, até que se acostumem com o ar entrando no meio dos ossos dói mesmo. É preciso respirar fundo várias vezes).

Seguro na mão a outra metade da chave e olho com testa enrugada para a porta. Eu nem sei como essa chave se quebrou. É impossível sair, visto que essa é a única passagem desse metro quadrado que me serve de moradia. Eu nem sei quando o meu pensamento se curvou. Do olho mágico eu vejo um pedaço da janela que fica no fim do corredor. Da janela eu vejo um pedaço da construção que fica no fim do corredor. Dentre os tijolos há boas camadas de cimento preso. Eu vejo concreto na cara do vizinho que está levando seu cachorro para um passeio. Concreta eu parada feita uma porta. Essa porta! Presa eu entre o lado de lá e o lado de cá feito o coitado do cimento. Minha testa enrugada respira apoiada na tal porta enquanto minha mão, a mão que segura a outra metade da chave, continua ao alto, próxima ao meu rosto de olhos fechados que ainda não encontraram o filete de calma perdida.

Fui convidada para uma festa à fantasia e acho que hoje vou fazer aquelas panquecas de salivar a boca. Comer, dormir e aguar as plantas. Ver um filme e não lavar a louça. A minha chave está quebrada na porta do apartamento. A minha clave está confusa no meio de tanto instrumento.

Tem outro vizinho passando com outro cachorro.

Quando o braço que tem a mão que segura metade da chave já estava entregue ao peso de estar no alto, reparei no namorado que saiu correndo atrás da namorada. Ele ainda vestindo a camiseta. Ela puta bateu com força o portão do meio lá embaixo, e a vibração de sua raiva direcionada aos seus músculos numa intensidade tal capaz de tremer o portão ao fechá-lo subiu pelas vigas internas do prédio antigo, percorreu rapidamente as paredes esponjosas e vibrou a porta do meu apartamento que tinha nele repousada: a minha testa. Ai.

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