quarta-feira, 5 de março de 2014

Quarta-feira de cinzas

Parece que escureceu de repente. O céu passou de azul-bebê a azul-bêbado em poucos minutos. A noite torna as luzes dos faróis contrários mais fortes e sinto como se elas invadissem minhas pupilas como feixes pontudos. Agudos.

Pontiagudos.

Mais um motivo para eu gostar do horário de verão e o principal motivo para eu detestar dirigir em rodovias durante a noite. O som calmo escolhido para a viagem, não, ele não me adormece, por ter medo de conduzir o carro em estradas bocejo de cansaço, não de sono, não, ele não me adormece, apenas acalma minha ansiedade em acelerar a velocidade, soltar o freio mão. Os acordes que saem do rádio acompanham a curva do meu pensamento que contornou a faixa amarela contínua e se lembrou de uma história:

- Você apareceu nos sonhos essa noite.
- Ah, é?
- Aham.
- E o que você sonhou?
- Então, foi meio estranho. Eu sentia que nós estávamos próximos, mas eu só te via de costas. Era uma sala de um apartamento calmo iluminada pela luz morna do sol em fim de tarde. Você vestia uma camisa branca maior que seu tamanho. Sentada no chão marrom, de frente para uma janela enorme, seu corpo se aquecia do suco gelado que tomamos. Nós conversamos algumas coisas, demos umas risadas, mas eu só te via de costas. E sonhei que soltava seu cabelo, e ficava trançando-o. Mas nunca conseguia terminar a trança. E sonhei que soltava seu cabelo, e ficava trançando-o. Mas nunca conseguia terminar a trança. E sonhei que soltava seu cabelo, e ficava trançando-o. Mas nunca conseguia terminar a trança.

Mais um pedágio. A iluminação viva que toma conta do telhado extenso alivia o latejar em meus olhos, afinal, aqui a luz não nasce apenas de pontos isolados. Sorrio para o moço que separa as moedas do troco porque gosto de sorrir. Ele é simpático e me responde um boa noite sincero. Sinto falta do seu boa noite aconchegante. Aquele que ainda não conheço, mas que me toca o rosto antes de dormir.

Percebo uma grande movimentação na outra pista. Sirenes mudas e uma leve confusão denunciam um ônibus tombado. Me espanto ao ver tamanho automóvel preso ao chão, mas após engolir o ar rapidamente e olhar para a esquerda não vejo ninguém aflito, ninguém chora. A cena do desastre parece acontecer em câmera lenta. Acho que não passou de um grande susto. Não tenho certeza. Especulo sem sucesso se havia muitos passageiros, se outro veículo se envolveu na colisão, se alguém ficou machucado, se morreu. Esses pensamentos crescem incontrolavelmente na minha cabeça, aquela cena me faz lembrar o quão frágil é a vida. Penso na minha família, que estou longe de todos e que estou sozinha. A saudade aumenta. Quando volto para a Capital, após visitá-los, a saudade aumenta. Durante alguns dias após o fim da visita ela espreme meu coração e faz suco de sangue triste em mim. Eu me desespero e balanço a cabeça repetidas vezes a fim de jogar para fora essa sensação de medo e angústia. Eu choro, mas quase, porque ao receber as lágrimas que quase caem me permito fechar os olhos por breves segundos, sempre longos quando se está na estrada, mesmo que o caminho seja essa reta a atingir o horizonte, mas me permito fechar os olhos. E mesmo assim os feixes pontudos dos faróis me pinicam. Sabe aquela lágrima que escorre sem querer denunciando a dor e percorre a eternidade do rosto até que finalmente se cala e morre na boca?




Novamente a pista à minha frente. As linhas amarelas cortadas. Eu não sei se você vai conseguir terminar essa trança um dia. Sabe aquela lágrima? Tenho pensando em cortar meu cabelo, mas tenho adiado isso também. É como fumaça de brasa que arde os olhos quando apagamos o que resta do fogo com água repentina. Com os fios longos é mais fácil segurá-los sem que escorreguem, sem que lhes escapem. Não tenho certeza.

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