terça-feira, 21 de abril de 2015

Descafeinada

Aceitou o convite para ir em um café que não gosta. Não por não gostar de café, mas além de não gostar de café aquele é caro para a qualidade que não tem. Os sofás são os primeiros a receber visita, estão sempre cheios. As mesas com quatro cadeiras não têm suporte para oito pés. Aparência mentirosa. Há uma constante dança descoreografada e sem ritmo entre pares diferentes de calçados. Tênis, sapatilhas, o sapato vermelho. Em uma das trocas de posição, bonito esse sapato. Obrigada. O cheiro do ambiente é bom e porque sim. Cheiro de café só é ruim se o pó queima. Conclui ao observar bocas em movimentos de fala que cheiro de café coado é melhor. Conclui logo em seguida que sua preferência se deve à sua cidade natal. Lá sempre se bebeu café coado. Longe de ser uma metrópole, mas maior que os centro urbanos mais próximos, Cornélio Procópio tem uma fábrica de café. Sempre teve. Existiu antes da cidade existir. Existiu primeiro.

Quando ela ainda brincava de amarelinha na rua sem saída, a fábrica ficava longe da cidade, no caminho de estrada. A realidade é que a fábrica continua no mesmo lugar, só que mais perto. Esse fato se deve a não se sabe qual crescimento: o da cidade ou o da menina. Criança que era detestava quando os ventos sopravam da fábrica em direção sua casa, a essência do odor do pó marrom vinha junto e impregnava o ar. Adulta que se tornou ama quando os ventos sopram da fábrica em direção à sua casa de menina, o cheiro de café se espalha pela cidade justo ao final da tarde e ao visitá-la, as vezes ganha esse prazer. Dizem que nosso paladar se modifica conforme crescemos. Eu gostava tanto doce, tanto! Tanto chocolate pirulito bala caramelo chiclete jujuba, mentira jujuba não, nunca gostei de jujuba, maria-mole brigadeiro beijinho cajuzinho. Detestava rúcula, para ela tinha gosto de terra. Tenho certeza que há uma explicação biológica barra evolucionista barra de preservação ou instinto barra outros termos que explica mesmo, realmente, de modo convincente a mudança do nosso paladar. Mas Ciência, me desculpe... não consigo deixar de me perguntar: será que não passei a gostar de rúcula por me acostumar com o amargor da vida e então aceitá-lo na minha boca?


O assunto se tornou tão enérgico que o casal descolado que se sentou há pouco na mesa ao lado parou de conversar para ouvir. Agora eles se falam por olhares concordando ou não com o que dizemos. Carioca. Seu amigo pediu um carioca, por favor. Carioca é café coado. Então não devia ter esse apelido. O mais apropriado seria alguma coisa entre procopense e cornélinho. A fábrica de café existiu lá primeiro. A verdade é que estou com sono e falo pouco. Até tinha um comentário muito bom a tecer em dado momento, mas tinha em maior escala a preguiça de falar. A chuva a chama de volta pra casa. É que assuntos da alma salgaram as bebidas e ela não está para angústias hoje. Aquele choro que dói bem aqui, sabe? É, bem aí! Deixa, deixa a cidade ser a atriz principal. Ela tá tão bonita nesse clima outonal. Tão sincera. Pra sair de casa em dias assim só a necessidade ou a sinceridade. Amor de outono, amor de inverno não dura só um verão. Eu sei Ciência, sei que as estações duram cada uma o mesmo período, mas me desculpe. É que tem um tempo dentro da gente que é outro, tempo esse que você nunca vai entender. Assim como eu não entendo estatística e química. Assim como eu não entendo a fome, a fúria, a violência, a miséria, a desigualdade. Assim como eu não entendo os motivos do abandono que sofri. Não entendo porque ele se despediu com um até logo e não voltou. Me deixou, me descafeinou. Eu não entendo Ciência, por que ele não fica mais um beijo? Por que ele não fica mais uma vida? Assim como não entendo esse silêncio, Ciência, você não vai conseguir entender o tempo esticado que tô sentindo dentro de mim.



Foto: Elisa Ribeiro

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