Aceitou o convite para ir em um
café que não gosta. Não por não gostar de café, mas além de não gostar de café
aquele é caro para a qualidade que não tem. Os sofás são os primeiros a receber
visita, estão sempre cheios. As mesas com quatro cadeiras não têm suporte para
oito pés. Aparência mentirosa. Há uma constante dança descoreografada e sem
ritmo entre pares diferentes de calçados. Tênis, sapatilhas, o sapato vermelho.
Em uma das trocas de posição, bonito esse sapato. Obrigada. O cheiro do
ambiente é bom e porque sim. Cheiro de café só é ruim se o pó queima. Conclui
ao observar bocas em movimentos de fala que cheiro de café coado é melhor. Conclui
logo em seguida que sua preferência se deve à sua cidade natal. Lá sempre se
bebeu café coado. Longe de ser uma metrópole, mas maior que os centro urbanos
mais próximos, Cornélio Procópio tem uma fábrica de café. Sempre teve. Existiu
antes da cidade existir. Existiu primeiro.
Quando ela ainda brincava de
amarelinha na rua sem saída, a fábrica ficava longe da cidade, no caminho de
estrada. A realidade é que a fábrica continua no mesmo lugar, só que mais
perto. Esse fato se deve a não se sabe qual crescimento: o da cidade ou o da
menina. Criança que era detestava quando os ventos sopravam da fábrica em
direção sua casa, a essência do odor do pó marrom vinha junto e impregnava o
ar. Adulta que se tornou ama quando os ventos sopram da fábrica em direção à
sua casa de menina, o cheiro de café se espalha pela cidade justo ao final da
tarde e ao visitá-la, as vezes ganha esse prazer. Dizem que nosso paladar se
modifica conforme crescemos. Eu gostava tanto doce, tanto! Tanto chocolate
pirulito bala caramelo chiclete jujuba, mentira jujuba não, nunca gostei de
jujuba, maria-mole brigadeiro beijinho cajuzinho. Detestava rúcula, para ela
tinha gosto de terra. Tenho certeza que há uma explicação biológica barra evolucionista
barra de preservação ou instinto barra outros termos que explica mesmo,
realmente, de modo convincente a mudança do nosso paladar. Mas Ciência, me
desculpe... não consigo deixar de me perguntar: será que não passei a gostar de
rúcula por me acostumar com o amargor da vida e então aceitá-lo na minha boca?
O assunto se tornou tão enérgico
que o casal descolado que se sentou há pouco na mesa ao lado parou de conversar
para ouvir. Agora eles se falam por olhares concordando ou não com o que dizemos.
Carioca. Seu amigo pediu um carioca, por favor. Carioca é café coado. Então não
devia ter esse apelido. O mais apropriado seria alguma coisa entre procopense e
cornélinho. A fábrica de café existiu lá primeiro. A verdade é que estou com
sono e falo pouco. Até tinha um comentário muito bom a tecer em dado momento,
mas tinha em maior escala a preguiça de falar. A chuva a chama de volta pra
casa. É que assuntos da alma salgaram as bebidas e ela não está para angústias
hoje. Aquele choro que dói bem aqui, sabe? É, bem aí! Deixa, deixa a cidade ser
a atriz principal. Ela tá tão bonita nesse clima outonal. Tão sincera. Pra sair de casa em dias assim só a necessidade ou a sinceridade. Amor de
outono, amor de inverno não dura só um verão. Eu sei Ciência, sei que as estações
duram cada uma o mesmo período, mas me desculpe. É que tem um tempo dentro da
gente que é outro, tempo esse que você nunca vai entender. Assim como eu não
entendo estatística e química. Assim como eu não entendo a fome, a fúria, a violência,
a miséria, a desigualdade. Assim como eu não entendo os motivos do abandono que
sofri. Não entendo porque ele se despediu com um até logo e não voltou. Me deixou, me descafeinou. Eu não
entendo Ciência, por que ele não fica mais um beijo? Por que ele não fica mais
uma vida? Assim como não entendo esse silêncio, Ciência, você não vai conseguir
entender o tempo esticado que tô sentindo dentro de mim.
Foto: Elisa Ribeiro
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