quarta-feira, 11 de abril de 2012

Um lugar

Num centro sujo esteticamente cinematográfico pra quem vai escrever um texto como esse o cheiro de cachaça impregnado na roupa alheia de dois dias atrás se mistura com o bafo quente de cigarro que sinto na boca de quem passa. Multidões socadas se permitem encostar generosamente nos corpos vizinhos para conseguir um lugar no ônibus ou pelo menos nele entrar. A igreja em reforma abriga os ratos que logo vão migrar para o boteco ao lado. As calçadas desiguais enganam os pedestres que sentem arder suas narinas com o fedor invasivo da urina que algum bêbado ou até um morador de rua deixou cair pesadamente ali, aqui. O cheiro agudo piora quando uma velha exala seu perfume doce de quem está pronta para ir ao bingo. As estátuas das praças já não se enjoam com o odor deixado pelas pombas em suas cabeças cor de bronze carcomido e assistem o primeiro beijo tímido de um casal; e também o fim da história de outros dois. Elas imaginam o que aconteceu com o menino que levou bronca do pai e se comovem com o choro daquela mulher. Aquela que ontem mesmo passou por ali entupida de craque berrando por causa de um homem. Os prédios altos, sujos e escuros ao competirem com outras arquiteturas escondem o último sexo sem consentimento ocorrido na cidade. Eles abrigam os sujeitos expulsos de uma rua em revitalização. A felicidade boba de um estudante sortudo que ganhou cachaça em dose tripla do dono do bar se confunde com a amargura de um recém desempregado que acaba de chegar para com o jovem dividir o balcão. A música pesada de um bar underground encontra a reverberação do samba de raiz que diverte mais alguns na mesma rua. Eu canto o que eu vejo. E eu vejo diversidade. Eu escrevo o cheiro que entope meu nariz. E eu respiro putrefação. Eu falo do que eu sinto e isso não é tão singular assim. Medo, interesse, pavor, curiosidade, repulsa e vontade. Um turbilhão numa caminhada. Uma imensidão num minuto. Diversas magnitudes num lugar.

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