segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Mastigando nuvens

Não tanto quanto o garoto com armações nos olhos desde os quatro anos. Ontem ele saiu do estágio um pouco depois que os outros, não para trabalhar mais e finalizar antes do previsto o projeto de grande responsabilidade que lhe cabe, mas porque se perdeu no relógio ao admirar a nova fotografia de prédios com céu que a garota, aquela garota dos cabelos coloridos com quem cruza nos corredores da universidade, publicou no Flickr.

A monotonia no rosto da mulher com maquiagem e coque falando ao telefone na janela do prédio mais alto da foto, o lembrou duma cena que ele filmou com os olhos e guardou na memória. Era fim de semana de rua na capital paranaense. Shows espalhados pelas calçadas de petit-pavé e até por praças nunca antes exploradas pelas notas musicais. No palco um clássico da música brasileira com quem ele compartilhava apenas as canções mais famosas. No asfalto seus pés revestidos pelo par azul de tênis velho, cansados das horas acumuladas em pé nos últimos dois dias. Os amigos que o acompanhavam se empolgaram em uma conversa sobre a exposição do eu nas redes sociais pouco depois dele, o meu personagem favorito, se hipnotizar pelo edifício grande de cor triste. Mais especificamente, por uma cortina que escapou da janela durante o fim de semana. Obviamente, algum funcionário ansioso por se divertir na sexta-feira saiu ligeiro após as seis horas, sem perceber que deixou para fora um pedaço da cortina que fica presa ao trilho das piadas repetidas e das planilhas infinitas. Obviamente. Mas prefiro como soa “uma cortina que escapou da janela durante o fim de semana”. O tecido branco de espessura leve ritmava com o vento sua felicidade em quase flutuar acima das árvores. O movimento era sincero e sem pressa, ao contrário do funcionário entregue à rotina. A fluidez da cortina contente desenhava frente às janelas empoeiradas uma coreografia sem repetições que gargalhava aos rodopios e dançava o som das vozes a cantar. Foi o melhor show de artista semidesconhecido bastante reconhecido no Brasil que ele foi.

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Meu olho ardeu por três dias até que uma pequena camada redonda gelatinosa, grande para um olho, nasceu no aparato em forma de oval deitado na parte do meu corpo humano feito próprio para enxergar. Demorei em aceitar que poderia ser algo sério e só então procurei uma oftalmologista.
- Estresse.
- Oi?
- Essa capa-circular-gelatinosa-de-cor-transparente-portanto-sem-cor nascida em seu olho e aí inquilina há uma semana foi ocasionada por estresse.
Obviamente, a oftalmologista se utilizou de termos técnicos os quais não me recordo neste momento. Nem em outro.
- Vou lhe receitar um corticoide. Volte em dez dias para eu analisar a evolução da capa-circular-gelatinosa. Podemos aproveitar e realizar os testes necessários que nos dirão se você precisará utilizar graus em vidro dentro de uma armação a fim de melhor ver e, logo, observar a maneira como o mundo se lhe apresenta.
Voltei.
Meio grau em cada olho.
Coisa pouca, mas tenho que usar óculos, sem os quais as letras embaçadas na tela do computador ou do cinema me agoniam, afinal, agora eu descobri que o mundo é mais nítido e que não existem tantas fumacinhas em volta da lua ou da luz do poste.
Então, eu utilizo óculos com a vantagem de que posso esquecê-los de vez em quando em cima de algum livro que ficou em casa. Até que preciso deles, mas não tanto quando o garoto com armações nos olhos desde os quatro anos.
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Sem as lentes cheias de graus, ele ficaria impossibilitado de ver a foto de prédios com céu que a garota dos cabelos coloridos com quem cruza nos corredores da universidade publicou no Flickr. Ficaria impossibilitado de reparar no contorno das nuvens atrás dos prédios, como ela bem capturou, utilizando a melhor abertura do obturador da câmera e o mais preciso tempo de exposição do filme à entrada de luz que aquela imagem exigia. Ah, quanta beleza e detalhe nessa foto! Sem os graus na frente dos olhos ele não teria reparado nas miudezas daquele clique sensível. Sem os tais, também não teria fôlego para puxar conversa com sua admirada no corredor do dia seguinte. Sem eles, não teria descoberto que as nuvens daquela foto a lembram uma brincadeira de sua infância.

A menina dos cabelos coloridos é filha única de uma família que morava em um condomínio fechado de vizinhos sem filhos. Por muito tempo foi uma criança solitária que encontrava em tudo uma descontração. No fundo de sua casa havia três árvores frutíferas, uma cabana de madeira, um balanço de pneu e um grande pedaço de grama. Em dias ensolarados ela gostava de reparar em como as nuvens são fofas, grandes, brancas, imponentes e saborosas. Nada, nada como mastigar nuvens. Ela sempre levou jeito, como bem diz sua avó, para ser atriz e ela utilizava essa habilidade para imitar os adultos. Acontece que cigarro ela não podia por na boca. E nada tão incorreto e emocionante para uma menina de seis anos como fingir tragar um proibido. Deitada no verde, ela se apoiava em um dos cotovelos e mantinha um pé cruzado sobre o outro. O braço que sobrava era dono da mão a segurar o invisível tabaco entre os dedos. Para ela, cigarros eram as nuvens da terra. De mesma cor, uma a impressionava pela beleza e outro pelo odor amargo. Com pose de personagem principal de filme alternativo (era assim que ela se sentia) a menina mimicava um profundo trago-nicotina com direito a olhos fechados enquanto imaginava, não, enquanto sentia a densa fumaça entrando em seus alvéolos. Fumaça que quando soltava ia voando para o céu e quando muitas fumaças se reuniam no teto azul, as outras crianças, as que não desejavam o cigarro, vislumbravam acima de suas cabeças carneirinhos, pássaros, ursos e dinossauros.

Sem os graus em vidro enjaulados numa armação ele jamais teria sentido o deleite dessa confissão. Ele, o garoto com armações desde os quatro anos. Ele, o estagiário que saiu mais tarde. Ele, o garoto que sonhava com sua admirada de cabelos coloridos. Ele, o menino que viu uma cortina-bailarina. Ele, o meu personagem favorito.



Foto: Bianca dos Santos

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