quinta-feira, 2 de julho de 2015

Liquidifica-dor




O solo de piano que ouvi nessa noite ainda ecoa na minha cabeça quando, ao me encasular num grande cachecol, caminho até a porta. A umidade do ar denuncia a chuva antes mesmo que eu possa enxergar a rua encharcada. Daqui de dentro não consigo observar se a chuva persiste. Na soleira da porta procuro um poste. Pisco em tempo prolongado um dos olhos e tapo com uma das mãos a luz que, apesar de não ser forte, me cega. Agora sim. Ainda chove. Uma chuva que cai com personalidade, sem pressa. É uma chuva-feiticeira. Parece carinhosa, mas te molha até a meia, até a calcinha. A axila. Respiro. Eu, claro, não trouxe um guarda-chuva.

Minha casa não está longe e eu realmente queria aproveitar essa caminhada. Passar pelas árvores de troncos tortos, pela casa escondida e pela casa viva, a que sinto vontade de conhecer. Ao chegar na quadra desta que tem o muro baixo troco o ritmo dos meus passos. De quatro tempos para dois. pá-pá-pá-pá, pá-pá-pá-pá, pá----pá, pá----pá. Desacelero. Estaciono. Finjo amarrar os cadarços ou tirar uma pedra da sapatilha. Repito esse ritual na frente da casa-viva, sempre, sem pressa, assim como a chuva-feiticeira. Mas eu sou mulher-transparente. Basta pôr reparo que se apercebe. Meu cadarço sempre desamarra em frente a mesma casa. Eu propositalmente tenho muita paciência em resolver meu pequeno problema. Quanto mais paciência, mais tempo.

Um dia me ofereço pra um café.

Essa chuva é feiticeira mesmo. Sussurra que está tudo bem, me seduz pra ela. Quase me ganha. A tosse que dói meu pulmão me convence a pegar um táxi e me protege da água gelada que certamente intensificaria minha gripe. A noite não vai seguir como planejei. A tosse me salvou da enfermidade, mas me privou da espontaneidade. Vou passar pelos detalhes do meu caminho sem poder admirá-los. Preciso indicar a direção: esquerda, esquerda, direita, esquerda, no primeiro portão à direita, por favor. Obrigada. Débito. Senha incorreta? Ops, cartão errado. Boa noite. Bom trabalho.

O prédio é baixo, mas escolho o elevador. Encontro um conhecido que esbarra em mim, mas não se desculpa. Tampouco me cumprimenta. Me sinto invisível e no mesmo momento uma peça da roupa que visto cai. Deixo no chão. Durmo com os pés gelados e com o apito que nasceu no meu ouvido na última semana. Acordo com a visita surpresa de uma amiga que quis preparar o almoço. Outra peça se desprende de mim. Conheço alguém. Ganho um abraço, um carinho, e no meio do beijo as roupas que me restavam no corpo perdem a costura. Estou nua. Sou mulher-transparente. Durmo com o apito que nasceu no meu ouvido na última semana e com uns pés esquentando os meus. Sou tomada por tamanha calma que meus bronquíolos relaxam.


Na manhã seguinte posso dormir mais que ele. Vejo que tem roupas. As que me restaram estão desmanchadas, não conseguem me cobrir. Sem panos ou tecidos nada mais é possível. Caminho nua pela cidade. Mas tudo bem, já sou mulher-transparente e o segredo que tentei esconder não consegui. Com os bronquíolos relaxados respirei intenso no abraço que ganhei. Engoli um bicho. Um bicho sem desenho definido ou nome escolhido. Um bicho que todo mundo vê. Ele anda dentro de mim e encontra cada célula do meu corpo. É um bicho esquisito que sem fazer cócegas me faz rir e sem contar histórias de terror me amedronta. Mulher-transparente que sou olho pra esse bicho em frente ao espelho. Tento agarrá-lo, mas ele é mais rápido e não se aquieta. De tanto me fazer seu caminho fiquei pisoteada. Mas eita bicho intrigante, não é que voa também? De tanto me fazer seu ar, virei nuvem leve. Agora minhas lágrimas, as de leveza e as de pisoteio, não escorrem dos olhos, mas caem do céu.

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