O solo de piano que ouvi nessa
noite ainda ecoa na minha cabeça quando, ao me encasular num grande cachecol,
caminho até a porta. A umidade do ar denuncia a chuva antes mesmo que eu possa
enxergar a rua encharcada. Daqui de dentro não consigo observar se a chuva
persiste. Na soleira da porta procuro um poste. Pisco em tempo prolongado um
dos olhos e tapo com uma das mãos a luz que, apesar de não ser forte, me cega. Agora
sim. Ainda chove. Uma chuva que cai com personalidade, sem pressa. É uma
chuva-feiticeira. Parece carinhosa, mas te molha até a meia, até a calcinha. A axila.
Respiro. Eu, claro, não trouxe um guarda-chuva.
Minha casa não está longe e eu realmente
queria aproveitar essa caminhada. Passar pelas árvores de troncos tortos, pela
casa escondida e pela casa viva, a que sinto vontade de conhecer. Ao chegar na
quadra desta que tem o muro baixo troco o ritmo dos meus passos. De quatro
tempos para dois. pá-pá-pá-pá, pá-pá-pá-pá, pá----pá, pá----pá. Desacelero. Estaciono.
Finjo amarrar os cadarços ou tirar uma pedra da sapatilha. Repito esse ritual
na frente da casa-viva, sempre, sem pressa, assim como a chuva-feiticeira. Mas eu
sou mulher-transparente. Basta pôr reparo que se apercebe. Meu cadarço sempre
desamarra em frente a mesma casa. Eu propositalmente tenho muita paciência em
resolver meu pequeno problema. Quanto mais paciência, mais tempo.
Um dia me ofereço pra um café.
Essa chuva é feiticeira mesmo. Sussurra
que está tudo bem, me seduz pra ela. Quase me ganha. A tosse que dói meu pulmão
me convence a pegar um táxi e me protege da água gelada que certamente
intensificaria minha gripe. A noite não vai seguir como planejei. A tosse me
salvou da enfermidade, mas me privou da espontaneidade. Vou passar pelos
detalhes do meu caminho sem poder admirá-los. Preciso indicar a direção:
esquerda, esquerda, direita, esquerda, no primeiro portão à direita, por favor.
Obrigada. Débito. Senha incorreta? Ops, cartão errado. Boa noite. Bom trabalho.
O prédio é baixo, mas escolho o
elevador. Encontro um conhecido que esbarra em mim, mas não se desculpa. Tampouco
me cumprimenta. Me sinto invisível e no mesmo momento uma peça da roupa que
visto cai. Deixo no chão. Durmo com os pés gelados e com o apito que nasceu no
meu ouvido na última semana. Acordo com a visita surpresa de uma amiga que quis
preparar o almoço. Outra peça se desprende de mim. Conheço alguém. Ganho um
abraço, um carinho, e no meio do beijo as roupas que me restavam no corpo perdem
a costura. Estou nua. Sou mulher-transparente. Durmo com o apito que nasceu no
meu ouvido na última semana e com uns pés esquentando os meus. Sou tomada por
tamanha calma que meus bronquíolos relaxam.
Na manhã seguinte posso dormir
mais que ele. Vejo que tem roupas. As que me restaram estão desmanchadas, não
conseguem me cobrir. Sem panos ou tecidos nada mais é possível. Caminho nua
pela cidade. Mas tudo bem, já sou mulher-transparente e o segredo que tentei
esconder não consegui. Com os bronquíolos relaxados respirei intenso no abraço
que ganhei. Engoli um bicho. Um bicho sem desenho definido ou nome escolhido. Um
bicho que todo mundo vê. Ele anda dentro de mim e encontra cada célula do meu
corpo. É um bicho esquisito que sem fazer cócegas me faz rir e sem contar
histórias de terror me amedronta. Mulher-transparente que sou olho pra esse
bicho em frente ao espelho. Tento agarrá-lo, mas ele é mais rápido e não se
aquieta. De tanto me fazer seu caminho fiquei pisoteada. Mas eita bicho
intrigante, não é que voa também? De tanto me fazer seu ar, virei nuvem leve. Agora
minhas lágrimas, as de leveza e as de pisoteio, não escorrem dos olhos, mas
caem do céu.
Sensacional!
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