quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Estrada para mim


Como fui para ali eu não. Acordei por causa de um balanço descompassado e uns solavancos. Banco desajeitado. Era noite preta de escuridão nebulosa. Neblina. Ao meu lado alguém que eu nunca. Puxo a cortina presa da janela que não abre pra ver o lado de fora. Olho então pra frente. Percebo só agora que estou num ônibus. Num ônibus com pessoas estranhas nunca antes. A cortina mais uma vez. Agora sim. Mas é inútil. Nada se vê do lado de fora. Árvores, gramas e morros verdes mudam de cor durante a noite. Ficam tão negros quanto o céu que também estava. Não fosse a pista esburacada eu teria certeza de que estava em cima do nada, seja lá o que ele. O motorista é tão magro que o ônibus capenga parece seguir sozinho. Gostei da ideia de ser guiada por ônibus perdido em algum lugar. Mas a tosse de pulmão esfumaçado confirma a presença de uma direção humana. O para-brisa é bastante grande. Me assusto quando olho para a pista. É impossível ver alguma. Coisa única que guiava o caminho era a faixa amarelada. Fraca de tão velha. Não é comum dar atenção às coisas velhas. Até faço três vezes o pai filho espírito santo amém como se. Acreditasse eu ou não naquilo, é o que acontecia: estava perdida. Até fiz três vezes o pai filho espírito santo como se. Adiantasse ou não, eu me levantei. Aquela capa branca que cobria o vidro não podia ser só neblina. Sem pedir permissão eu tiro o casaco e limpo o suor do vidro. Foi como tirar a catarata da visão. Melhorou, porém a bruma branca ainda persistia. O motorista magrelo agradeceu, mas sem dizer nenhuma. Não quis voltar para o meu suposto lugar. Sentei na escada ao lado do motorista. Fiquei ali. Nunca antes vi aquela estrada. Nunca antes vi aquele motorista. Nem as pessoas que vez ou outra se remexiam por ali. Olho pra trás. Observo com dificuldade algumas silhuetas que se misturam. É tão confuso que nem parece que estão. Todos repousam calmos e por estranho que pareça eu também estou. Tranquila no sem rumo. Serena na incerteza. É bom não saber das coisas também. Se desprender do previsível. Eu e aquela estrada sem fim na minha frente. Eu estava sonolenta e pensei em tanta coisa Tanta coisa que às vezes me esforço pra pensar e não consigo Reflexões que me fizeram tanto sentido Ideias que queria ter durante uma conversa importante Acho mesmo que tenho que me desprender de mim Ir pra terapia quase dormindo Esquecer meu superego. (Acho mesmo que ele só se dissolve quando estou com sono) Parar de parar para pensar E parar de pensar até De vez em quando acho que é isso que me falta O ócio Não falo de uma semana de férias ou da falta de compromissos Falo de um ócio da reflexão Desligar Me desligar, ah! ... Respiro.   Respiro.   Suspiro. 
Durante algum tempo eu pensei que seria melhor viver sem sentimento algum. “E poder viver sem sentimento algum”. Bobagem de primeira crise amorosa ou da primeira sensação de perda. Estranho pensar que fui eu quem pensou isso um dia. Eu que tenho uma lista de pequenos prazeres sem fim, eu que paro no meio do caminho pra passar a mão no tronco de uma árvore diferente, eu que saio de dentro de casa pra tomar a chuva cheirosa no fim da tarde, eu que amo, eu que sofro, eu que sinto saudades, eu que tenho medo, eu que já não me reconheci, eu que estou me reconhecendo, eu que não sei do amanhã, mas sei dos planos pro próximo quadrimestre, eu que quero três coisas ao mesmo tempo, eu menina, eu mulher, eu boba, eu dor, eu chorosa, eu curiosa, eu fingindo ignorar, eu confusa, eu ansiosa, eu concentrada, eu perspicaz, eu desesperada, eu extremamente detalhista, eu que coleciono fotos 3x4, eu que olho pro que não se vê, eu que sinto o tempo todo e eu sinceramente sensível.
Olho de novo para a estrada e pra branquidão como se tivesse me esquecido. Começa a chover insistentemente, mas calmamente. O barulho e o balançar contínuos do ônibus mais os incontáveis e intocáveis pingos que repousam em nossas cabeças me ninam. Sento em qualquer banco extremamente desconfortável para um corpo. Fecho os olhos e não busco. Fico comigo e não procuro. Alguém se levantou. É sua vez de. Parou em pé ao lado do motorista sem nem. Ele também não. Durmo. Acordo com o sol que aparece numa fresta da cortina sem pedir licença. Meus olhos doem. Saio do ônibus. Desço e caio numa rodoviária pequena de cidade também. Aquela mala sozinha parece ser minha. Abro e vejo uns livros. Meus. Olho em volta. Chão descalço. Poucos carros. No céu, a lua ainda. Acho um banco e fico. Sentada percebo tudo acontecendo sem pressa. Silêncio e silencio junto. Aos poucos ouço uma música nascendo. Vem de algum. Alguém. Canto de tristeza bonita surgindo longe. Alguéns. Reparo que todo mundo ainda. Fico ali com eles ouvindo o lamento da viola. Cada um com suas indagações ou lembranças. Mas todos.

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