Como fui para ali eu não. Acordei
por causa de um balanço descompassado e uns solavancos. Banco desajeitado. Era
noite preta de escuridão nebulosa. Neblina. Ao meu lado alguém que eu nunca.
Puxo a cortina presa da janela que não abre pra ver o lado de fora. Olho então
pra frente. Percebo só agora que estou num ônibus. Num ônibus com pessoas
estranhas nunca antes. A cortina mais uma vez. Agora sim. Mas é inútil. Nada se
vê do lado de fora. Árvores, gramas e morros verdes mudam de cor durante a
noite. Ficam tão negros quanto o céu que também estava. Não fosse a pista
esburacada eu teria certeza de que estava em cima do nada, seja lá o que ele. O
motorista é tão magro que o ônibus capenga parece seguir sozinho. Gostei da
ideia de ser guiada por ônibus perdido em algum lugar. Mas a tosse de pulmão
esfumaçado confirma a presença de uma direção humana. O para-brisa é bastante
grande. Me assusto quando olho para a pista. É impossível ver alguma. Coisa única
que guiava o caminho era a faixa amarelada. Fraca de tão velha. Não é comum dar
atenção às coisas velhas. Até faço três vezes o pai filho espírito santo amém
como se. Acreditasse eu ou não naquilo, é o que acontecia: estava perdida. Até
fiz três vezes o pai filho espírito santo como se. Adiantasse ou não, eu me
levantei. Aquela capa branca que cobria o vidro não podia ser só neblina. Sem
pedir permissão eu tiro o casaco e limpo o suor do vidro. Foi como tirar a
catarata da visão. Melhorou, porém a bruma branca ainda persistia. O motorista
magrelo agradeceu, mas sem dizer nenhuma. Não quis voltar para o meu suposto
lugar. Sentei na escada ao lado do motorista. Fiquei ali. Nunca antes vi aquela
estrada. Nunca antes vi aquele motorista. Nem as pessoas que vez ou outra se
remexiam por ali. Olho pra trás. Observo com dificuldade algumas silhuetas que
se misturam. É tão confuso que nem parece que estão. Todos repousam calmos e
por estranho que pareça eu também estou. Tranquila no sem rumo. Serena na
incerteza. É bom não saber das coisas também. Se desprender do previsível. Eu e
aquela estrada sem fim na minha frente. Eu estava sonolenta e pensei em tanta
coisa Tanta coisa que às vezes me esforço pra pensar e não consigo Reflexões que
me fizeram tanto sentido Ideias que queria ter durante uma conversa importante Acho
mesmo que tenho que me desprender de mim Ir pra terapia quase dormindo Esquecer
meu superego. (Acho mesmo que ele só se dissolve quando estou com sono) Parar
de parar para pensar E parar de pensar até De vez em quando acho que é isso que
me falta O ócio Não falo de uma semana de férias ou da falta de compromissos
Falo de um ócio da reflexão Desligar Me desligar, ah! ... Respiro. Respiro. Suspiro.
Durante algum tempo eu pensei que
seria melhor viver sem sentimento algum. “E poder viver sem sentimento algum”. Bobagem
de primeira crise amorosa ou da primeira sensação de perda. Estranho pensar que
fui eu quem pensou isso um dia. Eu que tenho uma lista de pequenos prazeres sem
fim, eu que paro no meio do caminho pra passar a mão no tronco de uma árvore
diferente, eu que saio de dentro de casa pra tomar a chuva cheirosa no fim da
tarde, eu que amo, eu que sofro, eu que sinto saudades, eu que tenho medo, eu
que já não me reconheci, eu que estou me reconhecendo, eu que não sei do amanhã,
mas sei dos planos pro próximo quadrimestre, eu que quero três coisas ao mesmo
tempo, eu menina, eu mulher, eu boba, eu dor, eu chorosa, eu curiosa, eu
fingindo ignorar, eu confusa, eu ansiosa, eu concentrada, eu perspicaz, eu desesperada,
eu extremamente detalhista, eu que coleciono fotos 3x4, eu que olho pro que não
se vê, eu que sinto o tempo todo e eu sinceramente sensível.
Olho de novo para a estrada e pra
branquidão como se tivesse me esquecido. Começa a chover insistentemente, mas
calmamente. O barulho e o balançar contínuos do ônibus mais os incontáveis e
intocáveis pingos que repousam em nossas cabeças me ninam. Sento em qualquer banco
extremamente desconfortável para um corpo. Fecho os olhos e não busco. Fico comigo
e não procuro. Alguém se levantou. É sua vez de. Parou em pé ao lado do
motorista sem nem. Ele também não. Durmo. Acordo com o sol que aparece numa
fresta da cortina sem pedir licença. Meus olhos doem. Saio do ônibus. Desço e
caio numa rodoviária pequena de cidade também. Aquela mala sozinha parece ser
minha. Abro e vejo uns livros. Meus. Olho em volta. Chão descalço. Poucos carros.
No céu, a lua ainda. Acho um banco e fico. Sentada percebo tudo acontecendo sem
pressa. Silêncio e silencio junto. Aos poucos ouço uma música nascendo. Vem de
algum. Alguém. Canto de tristeza bonita surgindo longe. Alguéns. Reparo que
todo mundo ainda. Fico ali com eles ouvindo o lamento da viola. Cada um com
suas indagações ou lembranças. Mas todos.
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