domingo, 21 de outubro de 2012

Matias

Cansado, mas espiritualmente agitado, ocupou-se durante a demorada refeição com assuntos abstratos, transcendentes mesmo. Pensou que o envolvimento com outras pessoas o fazia envolver-se cada vez mais com o seu íntimo, com o seu ser e com o seu não ser. Falou sobre a cor do vinho e imaginou que se seu sangue fosse de uva talvez sua corrente sanguínea se tornasse mais fina, e então seria mais feliz viver. Porque sangue menos grosso percorre com mais fluidez pelas veias e deixa a vida mais leve. Enquanto colocava cinco ervilhas na boca, uma por uma, entendeu que o peso dos seus olhos, o inchaço de seus pés e o formigamento de suas mãos eram ocasionados pelo sangue que nasceu nele e não era de fruta. 

Tomou mais um taça de vinho, com calma bastante, mesmo sabendo que dentro do seu corpo a velocidade continuaria pastosa. E se lembrou novamente que o envolvimento com outras pessoas o fazia envolver-se cada vez mais com o seu íntimo, com o seu ser e com o seu não ser. Olhou para o pedaço de carne que restava sozinho no prato. E se sentiu como ele. Há muito tempo não se relacionava com alguém quando além de cafunés, olhares sorridentes e orgasmos suados a interação entre dois perguntava a sua essência. Olhou para o pedaço de carne que restava sozinho no prato. E se sentiu como ele. Ele. Essa espécie de ser resta-um no cotidiano de apenas uma xícara na mesa e muito espaço na cama. Na casa. 

Preencheu mais uma taça e embebedou o pedaço de carne com o líquido roxo. Engoliu em pouquíssimas garfadas aquela fração de corpo morto encharcado com aroma etílico de uva. Em seu estômago, mais peso. O garçom do restaurante conceituado tinha vergonha de parecer inconveniente, mas o homem de sangue vermelho denso percebeu que era observado por olhos espantados. Satisfeito, pagou a conta com formalidade. Saiu do restaurante para as ruas escuras de paralelepípedos, assim como o dia que já não estava claro. 

Os olhos escorrendo, as mãos de chumbo, as veias de geleia e a vida solitária. Mesmo com as muitas pessoas que encontrou e conversou no caminho. Dormir para não pensar, fechar o livro para esquecer a história triste, fugir do espelho para fingir. As veias de geleia e a vida solitária. Como o pedaço de carne que ainda restava no prato.

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A frase "Cansado, mas espiritualmente agitado, ocupou-se durante a demorada refeição com assuntos abstratos, transcendentes mesmo." foi retirada do livro "Morte em Veneza" de Thomas Mann

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