quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Panul

Tenho duas taças de vinho vazias. Em uma delas escorre levemente até o fundo do vidro alto o óleo roxo que escapou da minha boca. Minha boca que com a língua tocando todo o céu de dentro de mim engoliu a uva derretida. Minha boca agora vazia sem a cor escura e docemente seca. Minha boca agora vazia sem outra língua pra ocupar o espaço que me sobra. Me sobra conforto no colchão. Me sobra um lugar ao meu lado no teatro. Me sobra o vácuo na boceta. Me sobra escolher qual o disco que vai tocar agora. E o próximo. E o de depois. Me sobra uma garrafa incompleta de vinho. Minha sobra de espaço no horizonte sem fim. Tenho duas taças de vinho vazias. Tenho duas taças de vinho vazias que desfrutei só. A de ontem estava suja porque logo dormi embebedada pelo som da vitrola e pelo cansaço das horas. A de ontem estava suja, então fui diretamente ao armário buscar a outra. A de ontem e a de hoje. Ambas sentiram o mesmo peso dos meus lábios. Ambas confidenciaram a minha mesma busca perdida. As duas descobriram pela textura da minha saliva a dúvida que repito há tanto tempo. Essas duas mesmas taças quiseram me acariciar ao perceberem o toque grosso dos meus dedos. Elas refletiram meus olhos pouco esverdeados, é verdade, perdidos firmemente num pensamento preciso, pontual e sem rumo. Ao encostá-las em meio peito enquanto relaxava elas descobriram que meu coração já não pulsava mais. Não pulsa pra pedir ajudar. Eu não pulso pra pedir ajuda. O formigamento da minha boca mostrava a constante inconstância do que toca aqui dentro. O formigamento da minha boca tremeu tanto que trincou as taças. As duas. Ambas. Essas duas mesmas taças de seguidas noites no meu quarto. Com elas trincadas, desfaleci sozinha em cima do meu travesseiro. E durante a noite minhas unhas, minha pele e meu cabelo. Trincaram também. Timtim.

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