quarta-feira, 20 de junho de 2012

Sorvete

Olhou para o banco da praça. Olho em volta. Todos continuavam suas tarefas cotidianas. Caminhou tímida até o banco como se alguém a vigiasse e sentou-se. Desconfortavelmente, é verdade, mas sentou-se. Sem descansar a pasta grudada ao peito a mulher experimentou parar um pouco e observar. Depois de uns minutos reparou que preferia investigar as crianças que eram arrastadas pelas mãos entrelaçadas com adultos apressados. Reparou também que a pasta estava largada em seu colo. A coluna dela já não estava tão ereta e as pernas não estavam rigidamente fechadas. Mas isso fui eu quem reparou, não ela. Os ombros relaxados denunciavam que estava mais íntima do encosto do banco. Mais íntima da praça também. E de quem via. 

E de quem a via. E de quem a vida. E quem a vida deixou relaxar um pouco também. 

Levantou-se sem saber ao certo porque estava fazendo isso, mas tudo bem, ela tinha que aprender a pensar menos. Rindo de si mesma pediu uma casquinha com uma bola de morango e outra de chocolate. E neste dia também resolveu caminhar até sua casa. Ela ria do que estava fazendo enquanto recordava sua infância numa rua sem saída de terra batida. Relembrando-se dos joelhos ralados, das unhas imundas, dos pés descalços. Dos muros e árvores escaladas, das corridas, das caídas, das risadas. 

Mas os sorrisos de rugas nos cantos dos olhos que as memórias do parágrafo anterior causaram se cessaram no exato momento em que o sorvete caiu no chão. Caiu o sorvete, caiu a pasta, caiu a felicidade. Pensando bem, a felicidade tropeçou. E no tropeço sim se deixou cair. Ela - não a felicidade, mas a mulher - ficou parada observando agora não a sua vida de menina que passava na tela da memória ou a vida de quem passava, mas o sorvete rosa que ia se misturando com o sorvete marrom. Um pouco estava derretendo e o outro pouco estava derretido. Então ela pensou que o derretendo e o derretido eram, em algum momento invisível, uma coisa só. Com os braços soltos ao lado do corpo e a cabeça baixa ela viu as fissuras da calçada serem pintadas de um doce não tão colorido assim. Eu vi sua estagnação, sua decepção. Eu a vi se abaixando. Ela se abaixou. Eu a vi se sentando. Ela se sentou. Eu a vi chorando. Mas ela não chorou. 

Ela contemplava o gosto nostálgico da infância se desmanchar e constatou que a casquinha do sorvete continuava ali, inteira. Ela pensou que queria ser a casquinha, não o sorvete. E não era necessário ser uma casca tão firme assim. Bastasse que fosse uma casquinha sua. Eu doí quando ela pensou isso porque começou a chover e na chuva a casquinha começou a amolecer. Elas; não a casquinha e a chuva; mas a mulher e a felicidade, amoleceram também. E derretidas foram embora. A mulher pegou a pasta com um gesto obrigatório de quem precisa daquilo para o dia seguinte. Caminhou devagar e molhada até sua casa como quem vai enfrentar uma noite acessa. Ela deitou no travesseiro com uma cabeça que não aprendeu a pensar menos. 

E eu me molhei na chuva até que a casquinha morresse.

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